16.2 - O livro, o caderno, você e eu

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Alison

— Você se lembra de quando éramos pequenos e eu costumava dizer que um dia gostaria de morar em lugares não-convencionais?
Evan sorriu com a lembrança e olhou em volta, enquanto caminhávamos lado a lado pelos corredores da Heaven's, agora às onze e meia da noite, deserta e apagada.
— Lembro bem, na verdade... sonho realizado, eu acho... Não é? — Me estudou por um momento, com uma expressão calma, que, por alguma coisa em sua mente, se tornou abatida. — Por isso você me trouxe aqui embaixo? Pra me mostrar porque você não vai voltar?
— Não. — Abracei mais o livro e o caderno em meus braços. — Eu te trouxe aqui pra te mostrar uma coisa legal.
— Ok... — respondeu num murmúrio e continuamos a andar.
Contudo, parecendo se incomodar com o silêncio, mesmo que este tenha sido breve, ele voltou ao assunto:
— Uma loja de departamentos estava nos seus sonhos? — Franzi as sobrancelhas, sem entender a pergunta. — É que é onde você mora agora e eu não me lembro de nada sobre isso. Eu lembro de você falando sobre antigas escolas, onde teriam muitos quartos, banheiros de sobra, talvez um auditório, para montar uma sala de cinema... ou postos de bombeiros, como naquele filme que você gostava, o Diário de uma Princesa.
— Por causa da barra pra escorregar de um andar para o outro. Verdade! — completei, minha memória refrescando.
— Sim! Admito que isso parecia divertido até pra mim, que sempre quis uma casa tradicional...
Mas eu poderia instalar uma barra numa casa dessas ainda assim — comentou, com um tom sugestivo.
— Eu tenho certeza que sim — me limitei a concordar. — Mas, eu sei lá... talvez seja porque eu moro em um único cômodo enorme agora, mas acho que fiquei preguiçosa demais pra essas coisas... — Dei de ombros. — E, não, uma loja de departamentos nunca esteve nos meus sonhos, mas eu consegui fazer funcionar muito bem, eu acho. Se é que a Heaven's ainda é apenas uma loja de departamentos... — considerei.
— Não? — Se virou para mim e nós dois paramos de andar, de repente.
— Não, eu acho... Quero dizer, olhe para como esse lugar cresceu com o tempo.
Evan, novamente, correu seus olhos por todo o vasto espaço à nossa volta e assentiu, concordando sem mais argumentos. Estávamos no exato centro da Heaven's, que havia se tornado uma espécie de área de lazer para todas as idades, basicamente.
A ideia inicial era que esta parte fosse apenas uma praça de alimentação, e Kat havia me deixado arquitetar o espaço, assim como decorar, mas admito que acabei me empolgando um pouco e criando um ambiente confortável demais, para o centro de um local público e movimentado, e as pessoas logo tomaram proveito disso; Haviam pequenas e grandes mesas, como as de lanchonetes, alguns quiosques de comidas e bebidas artesanais de afiliados, Wi-Fi grátis, pequenas TVs e computadores em alguns pontos, onde as pessoas poderiam alugar um tempo para assistir, pesquisar, jogar videogame... logo ao lado, havia um espaço fechado com beanbags, para quem quisesse apenas se jogar ali e ficar de papo para o ar com os amigos por um tempo.
Na época em que haviam apenas as múltiplas seções nos quatro cantos do espaço, onde vendiam-se produtos que variavam entre brinquedos, roupas, acessórios para pets, CDs e DVDs, livros e afins, a Heaven's era apenas uma loja de departamentos.
Hoje em dia, as pessoas viam este lugar como um ponto de encontro, em que até animais de estimação, por exemplo, não eram somente bem-vindos, como também convidados, alimentados e, muitas vezes, cuidados, já que a pequena clínica veterinária, que também funcionava como espaço de resgate, vinha operando muito bem, desde que fora aberta, pouco tempo atrás.
Apesar do espaço ser amplo, a Heaven's só não havia se tornado oficialmente um shopping center ainda porque morávamos em Nova York e haviam instalações dez vezes maiores e com muito mais funcionalidades, mas este era um sonho que, com o investimento correto, aos poucos Kat vinha fazendo acontecer.
E, aliás, era uma nova adição que eu estava querendo mostrar a Evan.
Segurei o livro e o caderno com um só braço e ofereci a mão livre para ele.
— Vem comigo, o que quero te mostrar está por este caminho.
— Escritório da Katrina? — questionou, quando andamos em direção ao corredor meio escondido que, até então, servia apenas para chegar até onde minha amiga se escondia para lidar com a burocracia gigante deste lugar. Mas, agora, algo mais estava sendo construído.
— Confie em mim.
Lhe ofereci um sorriso esperto quando passamos direto pela porta fechada do escritório — que em breve também não seria mais ali — até chegarmos ao fim do corredor escuro, onde, recentemente, uma porta anexando este prédio ao vizinho paralelo, também de Kat, havia sido instalada.
Enfiei a mão no bolso fundo da saia do meu vestido quando chegamos lá, buscando pelo meu pesado molho de chaves.
— O que eu vou te mostrar agora é segredo — disse, enquanto procurava pela chave correta. — Vai ser inaugurado daqui a algumas semanas, então, até lá, nem uma palavra sobre isso! — apontei a chave em direção a seu rosto, exigindo, e Evan puxou seu pingente de crucifixo de dentro da camisa que usava, dando um beijo na prata, como se selasse sua promessa. — Ok, então. Feche os olhos.
Ele fez o que pedi e eu coloquei a chave na fechadura, girando-a as duas vezes necessárias.
Entramos e, antes de revelar a surpresa, tranquei a porta novamente do jeito que estava, deixando as chaves penduradas no trinco.
— Vem, vou te guiar. Mantenha os olhos fechados, mas tome cuidado com os degraus.
O puxei até o topo do lugar, posicionando-o de frente, e logo alcancei os interruptores improvisados, acendendo as luzes.
— Pode abrir.
Assisti quando seu rosto mudou de adoravelmente incomodado pela luz forte para atônito ao extremo.
— Puta que pariu, não acredito nisso! — Evan expirou, surpreso, sorrindo para mim. — Uma sala de cinema?! Caramba, Katrina construiu uma sala de cinema?!
— Está construindo — corrigi, apontando para os interruptores pendurados por fios atrás de mim, como forma de exemplo. — Ainda está em processo e não é enooorme, mas agora que instalaram isso tudo — gesticulei para a tela de projeção e as dez fileiras de assentos acolchoados —, já dá pra ver o quão legal vai ficar, não dá?
— Incrível! Isso tá muito foda! Esse espaço é ótimo! — Começou a descer, rodopiando, distraído com os arredores, e eu o acompanhei, com medo de que pisasse em falso nos degraus. — Uau, sei que ela não vai com a minha cara, mas assim que eu ver sua amiga de novo, eu vou ter que dizer: ela arrasou com isso! Dentro de uma área residencial? Esse lugar vai lotar ainda mais, com certeza, o cinema mais próximo é só lá no centro.
— Sim! Foi o que eu disse, quando ela me perguntou o que eu pensava sobre seguir com esse projeto. Acredita que ela estava se perguntando se seria dinheiro jogado fora?
— De jeito nenhum! Isso é demais, quem não gosta de cinema? — se perguntou e eu sorri, assentindo.
— A gente adora.
— A gente sempre adorou! — enfatizou e, aos poucos, o deslumbre leve foi sumindo de seus olhos, apenas com seus pensamentos de novo, e então ele voltou a me fitar com pesar. — Isso é o porquê você queria me mostrar esse lugar, não é?... Quero dizer... Alison, você agora mora em um lugar com cinema. Este é realmente um sonho realizado! — Evan exalou, brusco. — Você está certa, não deveria ir. Você ama esse lugar, seu trabalho com a sua amiga... conquistou tanta coisa por aqui...
Arqueei uma sobrancelha, esperando para ver se ele ressentiria mais alguma coisa para então começar a contestar. Quando realmente vi o castanho claro de seus olhos reluzir, decidi apenas não prolongar mais isso tudo, eu também não estava mais aguentando:
— Eu amo mesmo esse lugar. E realmente é um sonho... mas é o da Kat, não o meu. Mais do que quis ou almejei qualquer coisa nesse mundo, meu sonho sempre foi me apaixonar, me casar, ter um monte de filhos, naquela casa tradicional que você sempre quis... com ou sem barra pra escorregar. — Abri um sorriso pensativo, até que meus olhos caíram para o livro e o caderno em minhas mãos. — E não posso dizer, exatamente, que isso mudou. Com ou sem cinema em casa, eu ainda largaria tudo aqui por esse sonho.
— Então, por que você não está fazendo isso? Qual é o problema? Por que você não vai comigo pro Maine? — Evan me segurou pelos ombros, exigindo minha atenção de forma um tanto quanto desesperada, mas sem me chacoalhar, ou nada do tipo. Apenas pousou suas mãos ali e me olhou, como se implorasse.  Ele queria uma resposta? Uma forma de facilitar as coisas? Acho que nem ele entendia, mas provavelmente pressentia o que estava por vir e era isso que gostaria que fosse diferente.
— Kat me deu isso hoje... — Mostrei a ele as capas do livro e do caderno, começando.
— Ok, e o que é isso?! O jeito que você está agarrada nessas coisas tá me deixando maluco! — Apontou, impaciente.
— Sinto muito por isso. É que... eu consegui colocar minha cabeça no lugar, quando se trata de você, e isso foi o que ajudou.
— Quando se trata de mim?! Como assim? O que isso quer dizer? — as perguntas explodiram e eu suspirei, tentando me manter calma e não me deixar levar pela sua exasperação.
— Vem, vamos sentar. Eu vou te mostrar.
O puxei pela mão mais uma vez, até um dos pares de assentos recém-posicionados na última fileira, a mais distante da tela de projeção.
Depois de mais uma longa respiração e um pedido para que não interrompesse, pois faria sentido no final, comecei a explicar o projeto digno de um trabalho escolar infantil que minha doce e genial melhor amiga havia me passado:
Hoje, enquanto ainda estávamos em seu escritório, e depois desta epifania que teve para me ajudar, Kat escreveu em quatro folhas diferentes do caderno sem uso "Evan", "Caleb", "Blake" e, por fim, "Noah", em sua linda e rebuscada caligrafia elegante. Tudo o que tinha me dito para fazer com isso era dedicar algum tempo para realmente pensar em tudo sobre estas pessoas, tanto as coisas positivas, quanto as negativas ou neutras, escolher um adesivo do livro que me lembrasse cada pensamento específico e colar abaixo do nome de cada um. Simples assim.
Imediatamente, assim como o olhar entediado que Evan me lançou enquanto explicava, eu pensei que isso era uma tremenda e tola perda de tempo. Mas, com a livre e espontânea pressão que Kat estava impondo para que eu começasse naquele segundo, eu fiz o que pediu, começando de forma simples:
Escolhi o adesivo de uma bola de futebol para representar o quanto Evan era habilidoso em todo esporte que já tentou praticar em sua vida e o quanto eu admirava essa sua capacidade. E o mesmo poderia ser dito sobre videogames, em geral. Ele sempre foi mestre em tudo o que experimentou jogar e isso me entretinha demais! Colei um adesivo de controle de console também e, fácil assim, a coisa começou a fazer sentido.
Memórias da infância que vivemos juntos vieram à tona, tanto as mais comuns e felizes, quanto as que me magoaram a muito tempo para que ainda pensasse nelas, como quando ele preferiu levar a garota que havia acabado de virar sua ex no baile de primavera, e não a mim, que já havia até costurado meu vestido. E esta lembrança, por exemplo, desenterrou um sentimento pacífico, naquela mesma noite, quando, tentando parar de chorar e me distrair com qualquer coisa na internet, me deparei com o vídeo em que descobri a existência de Blake Lowell. A minha obsessão imediata não me deixou pensar em nada que não fosse ele e seu talento absurdo por horas a fio!
E, assim, alguns adesivos para Blake depois, eu estava pensando em Caleb, em sua simpatia, confiança, talento, beleza... e também naquela noite em que ele esteve no meu loft, dançando, cantando, se divertindo comigo em perfeita sincronia, como se já fizéssemos isso a anos e ele não soubesse que era o cara por quem eu costumava ser maluca no passado. Eu acabei concluindo que sua amizade era mais importante para mim do que tinha me ocorrido até então.
Isso foi o que expliquei para Evan e aquela expressão dura, assim como a tentativa de insinuar que eu estava o trocando por Caleb, simplesmente sumiram, porque, como Kat havia me explicado, "o apelo visual ajudava de verdade". Até ele tinha que admitir que entendia.
A primeira dúvida que teve, quando acabei de lhe explicar como aquele monte de figurinhas aleatórias estava me ajudando a me organizar, foi em relação ao único adesivo que eu colei não abaixo, mas em cima do nome de Noah. Um adesivo em formato de "X".
— Eu só decidi que ele não vale a preocupação. — Dei de ombros. — Kat tentou argumentar, mas essa é a verdade. Eu me entreguei pra ele de forma muito íntima, confiei nele e, até aí, tudo bem. Mesmo que tudo tenha acontecido de forma casual, eu não esperava nada mais. Só que agora ele tenta me fazer sentir mal por isso, como se fosse um erro estritamente meu, algo que eu fiz ele fazer e, honestamente, eu não vou continuar permitindo que faça isso e sequer preciso pensar nele. Só o que eu quero, é distância.
Evan pareceu pensar um pouco demais por um momento, mas somente assentiu. Depois estendeu a mão e virou a página do caderno para o começo de novo, onde estava seu nome e sua variedade extensa de adesivos selecionados.
— Me explique, então, o que você quer comigo? — Gesticulou em direção à folha. — O que você concluiu disso tudo?
Levantei os ombros de novo, não conseguindo olhar em seus olhos por um momento.
— O que eu já sabia. Que te amo, que você é meu melhor amigo, que, apesar de muitos pesares, eu não desejaria que nada que vivemos até aqui fosse diferente... — Lambi o lábio inferior, tentando encontrar as palavras certas, mas já me sentindo exaurida. — Que eu te amo... em geral.
— Dei de ombros.
— "Mas"? — incentivou, seu tom grave.
Ele já sabia o que esperar.
Então apenas revelei, sem repensar.
— Mas a gente precisa terminar.
As palavras saíram em uma expiração sôfrega, porém fluídas, como a correnteza de um rio que seguia seu curso como a natureza exigia. Poderia ser, sim, turbulento, mas precisava ocorrer exatamente da maneira que estava ocorrendo.
— Então você disse, finalmente. — Coçou a mandíbula dura e recém barbeada, parecendo refletir sobre o que faria com isso. — Bom, obviamente você pensou demais nisso tudo, então eu não vou discutir demais. — Indicou a folha novamente. — Mas me diz qual exatamente é o problema. Só... só pra eu analisar... pensar... tentar achar uma maneira de consertar o que eu fiz.
— Não tem o que consertar. Não é sobre isso. — Franzi o cenho, não gostando ou me sentindo preparada para o lamento que se formava em sua expressão.
— Claro que é, Alison! — insistiu, se condenando. — Se você tá terminando comigo agora, depois de pensar tanto sobre isso, sobre mim, é porque eu fodi de vez com tudo em algum momento!
— Evan, não... — Expirei, as palavras ainda não me ajudando muito. — Não é desse jeito que isso funciona!
— Você tá me dando um pé na bunda porque finalmente teve o suficiente das minhas merdas! É desse jeito que funciona! — Suas mãos cortaram o ar, como se encerrasse o assunto e, de repente, uma gargalhada nem minimamente sincera espocou para fora dele e o vi se levantar, exclamando: — Quer saber?! Eu não posso deixar isso assim! Não dá, Alison, simplesmente não dá!
— Aonde você tá indo?! — perguntei, descrente que ele realmente estivesse indo embora.
— Pra longe de você! Estou te dando um tempo, enquanto eu esfrio a droga da minha cabeça e decido o que fazer!
— Eu já te disse que não tem o que fazer! Só me escuta! — Me coloquei de pé também, largando o livro e o caderno no banco ao meu lado.
— Eu não preciso que você me explique com adesivos ou, sei lá o quê, que eu fui imbecil com você a vida toda! Eu já sei disso e não preciso ouvir! O que eu preciso é sair de perto antes que faça mais alguma coisa pra te perder de vez! — Se virou, começando a pisar duro em direção a porta.
Assisti-lo novamente dar as costas para mim no meio de uma discussão teve um efeito diferente dessa vez. Não foi mágoa, confusão, cansaço e nada sequer próximo de desistência.
Foi uma fervura, que hiper aqueceu todos os meus nervos ao ponto de algo que ele mesmo já estava super acostumado a causar, mas estava prestes a receber agora: uma maldita explosão!
— EVAN, VOLTA AQUI AGORA!
A autoridade ecoou pelos quatro cantos do amplo espaço e, por um segundo, me assustei com o que havia acabado de sair de mim. Mas apenas por este mínimo segundo. Porque eu estava brava demais para que qualquer outra coisa se tornasse relevante.
Evan se virou para mim com os olhos arregalados. Ele não havia conseguido superar a surpresa.
— Você não vai me deixar falando sozinha de novo! — Apontei, firmando os pés no chão. — Vem aqui, senta de volta na porra do seu lugar e me escuta!
O grande, valente e metido à fortão, Evan Santana, não apenas me obedeceu, como realmente correu para fazer isso.
Olhei fixamente em seus olhos, ainda superiormente de pé, quando comecei, em volume normal agora:
— A sua atitude é um problema. A sua presunção é um problema! Essa sua mania, de sair berrando últimas palavras como se elas fossem lei, como se sua irracionalidade comandasse o mundo, é a porra de um grande problema! — cuspi as palavras, estabelecendo. — Mas Deus é testemunha de que eu posso lidar com isso, sempre pude! E eu estou, sim, terminando com você, não tem essa de "não deixar isso assim", isso está acontecendo, mas não é, preste bem atenção no que estou te dizendo, não é por você ou pelas porcarias dos seus problemas! É porque alguém precisa ser sua amiga e te ajudar com eles!
Seu pomo de adão desceu e subiu e ele piscou, desviando o olhar e se encolhendo, parecendo acuado.
A pena, então, apareceu em mim, arrefecendo minha raiva, tão rápido quanto ela apareceu. Mas, apesar de amenizar meu tom de voz, ainda não estava disposta a pestanejar.
— Você não fez nada de errado. — Pousei minha mão em seu rosto, o forçando a olhar para mim. — É exatamente da forma que você colocou: eu sou a pessoa que pensou demais em toda a situação e em você, especialmente. E eu estou te dizendo que nada disso é sua culpa. Não há nada que precise ser consertado!
Pelo menos, não quando se tratava de mim.
Olhando para qualquer lugar que não fossem meus olhos, Evan parecia ter muito o que dizer, mas o receio ainda presente estava o fazendo considerar vezes por demais internamente.
Sua língua correu asperamente pelos seus lábios secos, quando praticamente sussurrou, mais apreensivo do que jamais o ouvi soar:
— Eu estou perdendo a única pessoa nesse mundo que via algo bom em mim. Como isso pode não ser minha culpa? Como você espera que eu não faça nada sobre isso? — questionou, quase em desespero. — Você era minha única esperança de um dia construir uma família, de ser alguém de verdade... Um pai, um marido... Alguém... normal — soprou a palavra com asco e eu fechei os olhos por um momento, praticamente ouvindo a voz de Caleb em minha mente:
"... Evan me parece o tipo de pessoa 'tradicional', sabe? Que iria preferir fortemente não ser como... bem, não ser como eu."
Isso acaba com toda minha abordagem — concluí em pensamento, me sentando de volta ao seu lado.
Essa é a questão. — Expirei, tentando engolir o nó em minha garganta. — Você é normal.
Independentemente de quem seja a sortuda, ou o sortudo — dei ênfase, e ele desviou o olhar, mais enojado ainda e ferido —, que terá a mais absoluta benção de passar a vida ao seu lado, criar laços, filhos, aquela casa tradicional com você... Eu não estou dizendo que não quero ser essa pessoa. — Puxei seu rosto para mim de novo. — Só estou dizendo que, o que o seu coração decide seguir, não é um erro. Você não é um erro!
— Alison, para... — Tentou se afastar, mas eu segurei seu braço com firmeza, ainda insistindo.
— Evan, olha pra mim. Por favor. — Pisquei as lágrimas que ameaçaram vir e ele me obedeceu mais uma vez, parecendo lutar ainda mais com as dele. — Você nunca vai me perder. Nunca. Eu estou hoje deixando de ser sua namorada para ser sua amiga e poder estar ao seu lado pra te ajudar a se descobrir.
— E por que você não pode estar como minha namorada?! — debateu, agoniado. — Qual é o problema nisso?
— O problema é que você beijou um homem...
Novamente, turbulento, mas natural.
— Eu pedi desculpas por isso! — lembrou no mesmo segundo. — Eu te prometi que nunca mais ia acontecer!
—... ao mesmo tempo em que mal me tocava.
— Isso só acontecia porque eu pensava que você era virgem! Eu me sentia um lixo, sujo e nojento! — começou a se exaltar de novo, mas enquanto estivesse falando e não saindo, eu permitiria. — E isso me batia com mais força, toda vez em que eu olhava pra você, com esse seu rosto lindo, toda cheia de amor e inocência pro meu lado, enquanto minha mente continuava pecando! Te traindo dessa forma! — As lágrimas, apesar de ainda tentar reprimi-las, agora escorriam com mais liberdade. — Mas agora tudo é diferente, é uma merda, e eu me sinto o pior ser da terra por pensar assim, mas a verdade é que eu não vou ser aquele que estará te maculando, se a gente se deixar levar! Eu consigo te tocar, te beijar, fazer amor com você e tudo que a gente sentir vontade sem medo de estar tirando de você algo que você sabe que eu fui criado acreditando que é extremamente precioso! Eu não te julgo, Ali, de maneira alguma, só o que eu quero é que você entenda é que agora eu consigo! Eu posso ser quem você quiser!
Endireitei minhas costas, fechando os olhos e perdendo para as lágrimas também, que desceram sem meu consenso. Limpei-as para longe, em um movimento desajeitado, determinada a não deixar que me parassem.
— Ali, por favor... por favor! — implorou. — Me dá mais uma chance... Eu... Eu ajudo meu pai a encontrar outra pessoa pra assumir a oficina por lá. Eu faço ele entender, a gente não precisa se mudar, vamos ficar aqui, onde você quiser, você... você é a melhor pessoa que eu já conheci. Desde pequenos, eu percebi! Eu quis ficar perto de você, mesmo que fosse imaturo e idiota demais pra entender... eu vi a sua luz e eu preciso dela. Eu preciso de você! Eu nunca vou conseguir encontrar ninguém que me aceite... que me ame, como você ama! Como só você pode! Por favor, Ali... Por favor, eu te amo, por favor... Alison, por favor...
— Evan... — choraminguei, me sentindo quebrar por dentro.
— Por favor, por favor...
— Isso é doloroso pra mim também, Evan! Você não entende?!
— Não vai mais ser assim! Eu nunca mais vou te machucar, me desculpa! Eu prometo!
— Você não pode me prometer isso. Não é justo! — tentei retorquir.
— Vai ser! Eu prometo que vai ser! Eu vou morrer antes de fazer qualquer coisa que te machuque de novo!
— Não é sobre mim, Evan. Olha pra mim, se acalma, respira... — pedi, numa tentativa interna de eu mesma seguir meus comandos. Obtive mais êxito, mas ele estava me escutando. — Eu não estou fazendo isso por mim. Você precisa se descobrir, se compreender sozinho. Viu o que eu fiz com os adesivos? Você precisa encontrar a sua forma de colocar as coisas no lugar. E eu, com a luz e tudo o mais que você precisar, sempre, pelo resto das nossas vidas, vou estar aqui pra te ajudar. Com o que você precisar! Inclusive se isso for te fazer entender os seus próprios sentimentos! Você está me ouvindo, de verdade? Esquece essa intolerância! Eu respeito demais as suas crenças, a criação dos seus pais, mas isso não é sobre eles também! É sobre você merecer ser amado exatamente da forma que é. Eu estou considerando o que você sente e você também precisa fazer isso!
— Eu não consigo! — Seus olhos arregalaram em pânico com a menção dos pais. — Eu não consigo! Meu pai não vai aguentar isso! Eu não vou enterrá-lo com esse desgosto, Alison, eu prefiro morrer!
— Evan, pelo amor de Deus... — Esfreguei minha testa.
— Eu não vou fazer isso com ele, Alison! Eu não vou! Eu não consigo! Isso vai acabar com ele, sabia?! Só de saber que te deixei ir embora, ele vai perder a cabeça comigo! E aí vai me matar quando descobrir que é por conta dessas porras de sentimentos nojentos que você tanto quer considerar! Ele nunca mais vai me perdoar e isso vai matá-lo antes daquela porcaria de tumor! Eu não consigo fazer isso, Alison! Você não pode me forçar a fazer isso, eu não consigo!
Eu não consigo!
E foi ali, em meio a intermináveis absurdos balbuciados em lágrimas, que percebi que isso não estava chegando a lugar nenhum. Que, agora, ele realmente não estava mais me ouvindo e que, com certeza, não seria fácil assim fazê-lo entender.
Seria um processo árduo, longo e dolorido e já estava sendo a coisa mais difícil que já fiz na vida, porque assisti-lo sofrer, independentemente do motivo ou da minha revolta, nunca seria menos complicado.
Mesmo que eu o trouxesse para uma sala de cinema privada dos sonhos.
Mesmo que eu passasse a noite toda usando palavras, adesivos ou carícias para fazê-lo se sentir amado e mais calmo.
Mesmo que eu segurasse minhas lágrimas, respeitando as suas, até o ponto em que elas explodiriam para fora dos meus olhos!
Para sempre seria insuportável fazê-lo sofrer.
Então simplesmente o puxei para meus braços, embalando seus ombros fortes, enquanto o sentia convulsionar com o choro, porque era tudo o que eu podia fazer neste pesado primeiro passo. Era onde aquela disposição sobrenatural de ajudá-lo se manifestava.
Apertei seu corpo contra o meu, porque agora, eu podia lidar com a sua dor sem que nada em mim tentasse se opor a isso. Sem que ele sentisse a necessidade de "não preocupar sua namorada", quando precisasse de mim.
Apertei seu corpo contra o meu com afinco, porque assim lhe demonstrava minha força sem mais palavras que não seriam ouvidas.
O importante era ele ter certeza, principalmente neste momento, de que eu era sua melhor amiga.
E que, por isso, agora podia ser forte por ele.

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