1.1 - Nunca fui beijada de verdade

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Alison

Como reconhecemos um beijo?
Quais os pontos um ser humano deve considerar para se permitir pensar "sim, eu definitivamente estou assistindo um beijo ocorrer agora"?
O que o exemplo a minha frente me fazia questionar, na verdade, era se havia algum limite em que o beijo já não era mais apenas um beijo.
Meu rosto involuntariamente se distorceu numa careta de nojo quando notei demais a presença das línguas. Elas não deveriam permanecer dentro das bocas? Pelo menos uma na do outro? Eu deveria mesmo ser capaz de enxergar tanto assim delas? Mesmo sob a iluminação tão baixa?
Ok, então. As línguas.
Como o exemplo mostrava até demais, elas faziam parte das características de um beijo. Um beijo explícito, mas ainda assim apenas um beijo, já que grande parte das roupas continuavam em seus lugares. Isso deve estabelecer um certo limite.
Quais outros aspectos fortes eu conseguia captar aqui?
Lábios, lógico! Desses eu entendia, mas não da forma que ocorria ali. Eles estavam...
praticamente se engolindo!... Meu Deus! Até os dentes estavam na brincadeira, esses dois vão ficar com as bocas machucadas depois disso.
Por que haviam tantas mãos envolvidas? Por que elas puxavam e tocavam tanto do corpo um do outro? Um beijo não deveria envolver mãos... Até compreendia o uso violento das línguas, lábios e dentes, mas, mãos? Não deveria ocorrer desta forma, mesmo que esteja fora dos limites padrão.
As barreiras continuavam nos lugares, em especial, as calças, então isto era apenas um beijo.
Mas nunca foi desta forma antes, nunca houve tantos movimentos, tantos toques, tanta fome...
Nunca foi desta forma... comigo.
Meus ombros caíram junto com a minha ficha.
- Eu nunca fui beijada de verdade.
Acredito que não tenha gritado. Tenho certeza, na verdade, minha voz saiu como um suspiro resignado que quase se mesclava à música alta, ainda que abafada, e das falas incoerentes das pessoas no andar de baixo. Toda a separação de línguas, lábios e dentes, no entanto, com os dois elementos caindo assustados para lados opostos do pequeno sofá, me fez sentir como se tivesse anunciado minha inexperiência com um maldito megafone na cara deles. Seria cômico se até eu mesma não tivesse pulado de susto com a reação.
- ALISON! - o elemento da esquerda, que eu bem conheço como Evan, exclamou. Os olhos esverdeados estavam arregalados e os lábios - adivinha só! -, vermelhos como se estivesse mastigando uma pimenta! - O que está fazendo aqui?
Ergui as sobrancelhas para sua indignação.
- Eu vim te buscar. A gente tinha combinado que eu viria às onze... lembra?
- Verdade! - Engoliu em seco, olhando de mim para seu amigo ofegante do outro lado do sofá, depois de volta pra mim. - Verdade, verdade... Desculpa! Desculpa, desculpa, desculpa...
- Escondeu o rosto nas mãos.
- Tudo bem...? - respondi, meio incerta. Pelo o que, exatamente, ele estava se desculpando?
Pela recepção "agressiva", ou pela... outra coisa?
Ao lado, o rapaz tentava acalmar sua respiração, ao mesmo tempo em que seus dedos trabalhavam em fazer o possível para colocar seus cabelos em ordem. O rosto e o torso nu ainda mais avermelhados, mas julguei que isso fosse por sua pele alva. Olhar muito para ele estava me deixando desconfortável.
Voltei para Evan. Ele tinha o mesmo tom de pele que o meu e eu costumava acreditar que nós não pudéssemos enrubescer tão facilmente assim. Quero dizer, as vezes em que o vi vermelho foram sempre após algum jogo de futebol, ou atividade parecida. E eu nunca tive motivos para ficar, mesmo nas raras vezes em que precisei correr.
Pele corada, então. Mais uma característica de um beijo ardente que eu nunca tive. Esta estava sendo uma noite de descobertas.
O rapaz agora olhava em volta como se procurasse por algo, olhou para mim rapidamente, mas acabou escolhendo se voltar para Evan também. Ele mantinha seus olhos fechados, os cotovelos nos joelhos e uma expressão retraída de quem apenas queria sumir.
- Você viu minha camisa? - o rapaz perguntou, parecendo não saber como se comportar, e a dúvida não havia sido dirigida a mim, apenas senti isso no ar, mas minha visão periférica resolveu me trair e eu me limitei a apontar timidamente para o tecido azul claro no sofá, bem distante de seu dono. Evan o amassava parcialmente com seu traseiro.
Eu havia chegado já no meio do "ato" que eles estavam prestes a performar, mas poderia imaginar como aquilo teria acontecido: mãos desesperadas, exigindo que a troca de salivas se iniciasse o quanto antes, e, quando iniciada, dedos perdendo-se entre subir para os cabelos escuros e brilhantes do rapaz e puxá-lo ainda mais, até que a camisa se tornasse incômoda ao extremo para ambos, arrancando-a na confusão e fazendo com que a peça caísse pelas costas de Evan sem que nenhum dos dois mal notasse.
Devo ter aparecido pouco depois. Bati na porta, não houve resposta, mas decidi apenas checar se Evan estava por aqui. Ele estava, mas... ocupado. Fui tão facilmente ignorada quanto a camisa, mesmo depois de me fechar aqui com os dois.
"Sensação de que nada mais no mundo além daquele beijo importava ou existia"... outro critério marcante. Deveria passar essa lista para o papel mais tarde.
- Você pode...? - o rapaz começou a pedir, um tanto hesitante, quanto retraído.
Num movimento assustadoramente rápido, Evan puxou a camisa, lançou-a para o rapaz, que pegou de forma desajeitada, e voltou para a posição de antes, ainda de olhos de fechados.
- Tudo bem então... obrigado - murmurou, se colocando de pé. O desconforto ainda presente.
- Foi, ahm... um prazer te conhecer, Evan.
Meu melhor amigo assentiu rapidamente, sem o encarar, como se quisesse apenas acabar com o que quer que estivesse acontecendo de estranho aqui. Eu, completamente deslocada, também desejava isso, pois sabia o que era essa estranheza e de onde ela vinha. Mas o rapaz estava no escuro neste assunto e, aparentemente, não conseguiu conectar os sinais sozinho.
O descontentamento derrubando sua postura foi evidente demais para o meu coração mole não se simpatizar. Decidi lhe explicar que ele não era a causa da ignorância de Evan antes que saísse do cômodo, mas, assim que terminou de vestir a camisa e se virou para sair, ambos finalmente nos encaramos de frente e as expressões de surpresa foram simultâneas.
- Ei, eu te conheço! - reconheceu animado e eu me peguei sorrindo, de repente.
- Caleb Lowell, da classe de Expressões Plásticas do ano retrasado! - recordei de imediato.
- Eu me lembro de você, o irmão caçula do rockstar! - Ele me devolveu o sorriso divertido.
- Alison Cansoli! - Me deu um rápido abraço e eu devolvi, empolgada. Eu me lembrava principalmente de sua simpatia e do quanto seus sorrisos me derretiam, mesmo que nunca tivéssemos nenhuma proximidade. É tão raro esbarrarmos em ex-colegas de classe que realmente gostaríamos de rever. - Me lembro muito bem de você também, mas você nem precisa de parentes famosos. Suas esculturas eram incríveis, garota! Eu sempre fiquei impressionado com o seu talento!
Ele não havia me beijado, mas se minha pele não tinha enrubescido com aquele elogio, eu não tinha certeza se um beijo faria muito mais. A temperatura nas minhas bochechas parecia ter subido ao máximo!
- Ah, obrigada! Nossa... - Meu peito inflou de orgulho. - Eu não achei que alguém notasse...
- Está brincando? Era impressionante! - Ficou em silêncio por um segundo, ainda com o sorriso enorme na cara, até que pareceu confuso. - É só disso que me lembro, na verdade... Eu não cheguei a te chamar pra sair? Por que eu nunca te chamei pra sair?
Meu coração pulou uma batida e agora eu tinha certeza que tinha virado um tomate.
Encarando o Adonis a minha frente, notei seus contentes olhos azuis, o sorriso branco e alinhado à perfeição, o maxilar bem desenhado, a seda macia que eram seus cabelos caídos sobre a testa... e então encarei meus próprios pés, desconcertada, tendo um vislumbre do conjunto de moletom gasto que vesti apressada para vir buscar Evan nesta festa desconhecida.
Eu não queria nem saber que tipo de impressão este "look da noite" passava junto com o cabelo que eu sequer me incomodei em prender ou escovar quando acordei assustada e também com a minha cara lavada por trás dos óculos redondos de leitura. Ele não notava certo "desequilíbrio" aqui?
E, outro detalhe: Evan. Meu Deus, e o que ele e Evan estavam fazendo?
Lancei-lhe um olhar rápido, e ele ainda continuava com a bunda colada naquele sofá, mas agora encarava a nós dois com a boca meio aberta, numa expressão que pendia para surpresa e, sim, ainda total desconforto.
Não sei se foi por minha ausência de respostas, ou se Caleb, assim como eu, havia se lembrado só agora de Evan e da "situação indecorosa" de alguns minutos atrás, mas estes sinais pelo menos ele conseguiu captar e entendeu exatamente o que eu estava pensando.
- Ah, não! Isto não tem nada a ver! - Gesticulou em direção ao sofá, como se me dissesse para esquecer. - Eu gostei dele hoje e acabou acontecendo. Mas, antigamente, eu vivia de olho em você. Não sei como nunca te chamei pra sair - constatou como se não fosse nada e eu nem precisei olhar para Evan para sentir sua tensão crescente.
- B-bom, nós só estudamos juntos por um semestre e... - E haviam zero motivos para um cara como você notar a minha existência! - nunca conversamos muito. Deve ter sido por isso.
Ele me olhou, considerando.
- Não, eu lembro que havia algo mais... mas pode ser. - Deu de ombros, sorrindo de novo. - De qualquer forma, já que você por acaso acabou descobrindo onde eu moro, agora nós poderíamos comb... - Evan simplesmente surgiu entre Caleb e eu, nos surpreendendo.
- A gente precisa ir, não é, Ali? - imprecou rudemente e eu me afastei num ímpeto quando o ar quente que saiu de sua boca alcançou meu nariz, quase me embriagando junto com ele. Eu nem tinha percebido que ele tinha bebido, até então. - Ela tem prova amanhã cedo - explicou, finalmente se permitindo olhar para Caleb de novo.
- Prova? - Caleb arqueou uma sobrancelha, sorrindo desconfiado. - Você está estudando de novo, ou o seu amigo aqui está incomodado com alguma coisa?
Os dois.
- Estou estudando de novo e já acabando - respondi, mordendo o interior da bochecha. - Nada superior, apenas aulas para aperfeiçoar meu francês.
- Très impressionnant! - elogiou, com dicção perfeita. - Bom, então não vou mais segurar vocês aqui. Evan, mais uma vez... foi um prazer - deu ênfase alongado na última palavra, o que o fez engolir em seco. - Já você, Alison... - Apontou para a porta fechada. - Minha festa, minha casa... agora você já sabe. - Piscou um olho para mim e depois foi até a porta, segurando-a aberta para nós dois.
Evan e eu nos limitamos a apenas trocar um olhar antes de os dois sairmos correndo para fora dali e direto para as escadas.

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