19.2 - Fraca e estúpida

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Alison

Como reconhecemos a embriaguez?
Quais os pontos um ser humano deve considerar para se permitir pensar "sim, eu definitivamente estou bêbada feito um gambá agora"?
Eu tinha a tontura e falta de coordenação motora, o mundo parecia rodar a minha volta e eu tinha certeza que bastaria um movimento brusco para me fazer perder o controle e liberar tudo o que estivesse em meu estômago sem o mínimo recato.
Estes eram alguns dos requisitos, eu já havia pensado nisso e confirmado naquele show anos atrás, quando conheci Kat. Naquele dia eu estava tãaaao feliz... Me diverti a beça, dancei, pulei, realmente curti um bom momento.
Mas aquele foi um dia feliz, um em que uma real conexão se formou. O dia em que entrou em minha vida uma pessoa que não tinha condições de ser nada além de uma garota bêbada, que estava lá apenas para se divertir também, mas acabou criando um laço de parceria e amizade para o resto da vida com uma outra garota tão alcoolizada quanto ela. Mesmo que nenhuma das duas tivesse noção de que era isso que estava acontecendo no momento.
Apesar da alegria daquele dia, a sensação condenável de mal conseguir ficar de pé sozinha não era nem um pouco tolerável para mim, então nunca mais senti vontade de repetir aquele episódio.
Até hoje.
Hoje eu queria estar feliz. Hoje eu buscava por distração, bons momentos e entorpecimento, e até consegui por umas horinhas, mas, agora, já amanhecendo, quem não havia ido embora, estava desmaiado em algum canto da casa, e eu vim parar nesta varanda, dentro de algum quarto fechado na casa de Caleb, querendo literalmente cair de bêbada também. Mas este entorpecimento não apareceu.
Me larguei deitada de qualquer jeito no banco de madeira que encontrei no espaço, soltando a garrafa de cerveja no chão. Encarando os primeiros tons alaranjados que surgiam no céu, invadindo a escuridão, me senti frustrada...
Será que eu não havia bebido o bastante? Não havia misturado o suficiente tudo o que tinham trazido para esta "festa pequena"? Qual era o problema comigo, por que não conseguia me desligar dessa bad?
Hoje não é o dia em que você conheceu sua melhor amiga, Alison, é a noite em que seu, agora, ex-namorado, cutucou sua ferida mais profunda.
E depois você foi humilhada pública e virtualmente, claro.
Fiz uma careta confusa para o céu. Ele havia acabado de falar comigo, ou isso foi apenas a minha consciência?
Engasguei com uma risada nada delicada e menos ainda divertida. Aquelas gargalhadas que mais se parecem com uma tosse e que você deixa acontecer simplesmente porque é isso ou começar a chorar... De novo, no meu caso!
— Não, não, não... — Tentei coçar meu olho, mas acabei apenas bagunçando minha franja ainda mais com as costas da mão. — Chega de lágrimas... chega...
— É isso aí, sem mais lágrimas.
Virei minha cabeça para o lado, vendo Caleb parado na entrada da varanda.
— Olha ele aí! O anfitrião da festa do ano! — exclamei e soltei uma vaia de alegria, socando o ar, o que arrancou uma gargalhada dele. — Ah, é, desculpe... pequena festa do ano.
Ele meneou a cabeça em negação, ainda sorrindo. Com um esforço descomunal e nada gracioso, comecei a me debater e remexer feito uma tartaruga de casco para baixo, apenas para me colocar sentada e dar dois tapinhas no espaço ao meu lado, para ele vir se sentar também.
Caleb expirou divertimento, antes de aceitar meu convite.
Não acho que tenha pensado antes, ou se sequer tinha esta capacidade a essa altura do campeonato, mas, quando fui ver, já estava me arrastando para subir no colo dele e me recostando contra seu pescoço, em busca de conforto.
Não consegui julgar sua reação — e nem me importava de verdade com isso naquele momento —, mas assumi que ele provavelmente estava sem jeito, pois não havia movido um só músculo, seja para me repelir, ou corresponder.
Eu decidiria por ele então.
— Você tem que me abraçar agora — mandei, inspirando a leve picância de seu perfume. — Braços a minha volta, Caleb.
Ouvi sua risada baixa, mas ele me obedeceu. Um braço forte confortou meus ombros e o outro enlaçou minha cintura, logo começando a esfregar minhas costelas por cima do tecido do meu vestido, me acariciando como se eu fosse um bichinho de estimação.
Longe de mim reclamar! — pensei, cerrando os olhos.
— Hmm... isso é bom... — murmurei, inspirando fundo.
— Você deve estar muito bêbada... — comentou, risonho  — Não o suficiente. — Torci meu nariz numa careta que ele não podia ver. — Mas eu sou fraca e burra quando estou cem por cento sóbria, então isso já é melhor.
— Pare de falar assim de si mesma — seu tom ainda era suave, mas havia uma certa tensão incômoda.
— Tem razão... eu não preciso falar.
— Ou pensar — repreendeu.
Faible et stupide... c'est moi.¹
Senti o corpo firme de Caleb convulsionar em risadas.
— Não é pra falar em francês também!
D'accord.² — Respirei fundo. — Sabe o que eu queria?
— Parar de falar asneiras?
— Não, isso é o que você quer... Eu queria ser como você — confessei e ele expeliu uma risada.
— Agora você está mesmo falando asneiras...
— Não, é serio... Você é tão... bom! — enfatizei porque a palavra em si não parecia suficiente para expressar o que eu queria dizer. — Você tá sempre tranquilo... confortável... é legal com todo mundo... confiante... sabe exatamente quem é e o que quer...
— Ah, é... ok. — Riu com sarcasmo e isso me fez levantar a cabeça, me afastando um pouco para encontrar seus olhos bonitos que já não estavam mais tão divertidos.
— Mas é verdade, Caleb! Eu tenho certeza que você é muito mais, mas isso tudo é o que se destaca.
— Isso tudo é a fachada. Queria eu ser essa pessoa tão tranquila que você descreveu. — Olhou para mim, pensando por um momento. — Você é essa pessoa. Com exceção da confiança, que definitivamente você poderia usar um pouco mais, você é esta pessoa tranquila, boa e confortável.
Só que sofre de altruísmo excessivo e isso te cega nessa parte.
— Não, isto não é altruísmo ou cegueira, até parece! Olhe só pra mim... se você tivesse vivido minha vida apenas por esta noite... — Levantei os ombros, com um sorrisinho chateado. — Já teria mais do que o bastante para ver a completa bagunça que eu sou.
Seu rosto se transformou em pura complacência afetuosa e a mão que estava nas minhas costelas afastou uma mecha do meu cabelo para trás da orelha, para então segurar meu queixo com delicadeza.
— Você está passando por um término complicado. É normal as coisas estarem instáveis.
— Não, não é isso, eu... — Lambi o lábio inferior, tentando raciocinar sobre minhas palavras, mas não conseguindo ir muito longe. E não era apenas pelo álcool. — Não é só o término. Está, sim, sendo difícil, mas... honestamente, é só a ponta do iceberg.
Caleb me estudou por um momento e, contradizendo o que eu havia dito antes, ele parecia desconfortável com a minha tristeza, provavelmente pensando demais no que fazer ou dizer. Balancei minha cabeça em negação, o poupando.
— Deixa pra lá. É um assunto chato. — Escorreguei para fora de seu colo, ficando de pé na sua frente. Quando fiz menção de sair dali, para ir sabe-se lá onde, Caleb segurou minha mão, me impedindo.
— Hoje já foi agitado demais, adoraria um assunto chato agora. — Ele sorriu, empático, se colocando de pé também. — Você quer conversar sobre este assunto chato?
Honestamente? Eu queria. Queria desabafar sobre cada mínima inquietação que me assolava, porque estava acostumada a poder fazer isso e, assim, começar a me sentir um pouco melhor.
Mas Evan era parte do problema e Kat... bom, Kat havia me avisado horas atrás que estaria indo embora, mas que estaria com o celular por perto a noite toda, quando eu precisasse de uma carona para ir pra casa. Blake havia sumido junto com ela, então de jeito nenhum eu estaria ligando, seja pela carona ou por qualquer outra coisa.
Fora os dois, eu confiaria desabafar com... alguns membros da família, que só sabiam reclamar por eu não ligar mais vezes e, sim... Caleb. Mas será que ele queria mesmo ter de lidar com essas coisas?
Tudo bem, éramos amigos e, se esta festa havia servido para alguma coisa, era para entender o quanto um gostava da companhia um do outro, mas...
— É complicado. Agradeço de verdade, mas... apenas ouvir sobre isso tudo pode ser muito exaustivo.
— Eu não estou fazendo nada agora. — Deu de ombros. — Quanto a ser exaustivo... — Deu uma olhada para dentro do cômodo atrelado a varanda e me puxou até a cama enorme, sem roupas de cama, no centro. — Blake usa este quarto quando dorme aqui, mas tenho certeza que não vai se incomodar se nós dois acabarmos desmaiando de cansaço com o seu assunto chato — brincou, se livrando dos sapatos bem engraxados, logo pulando na cama e fazendo sua vez ao me chamar para sentar ao seu lado.
Seu sorriso brilhou de maneira tão reconfortante que acabei realmente querendo estar junto dele, independentemente se estivéssemos conversando ou não.
Quando ambos já estávamos confortáveis, encostados na cabeceira surpreendentemente macia da cama, Caleb buscou pela minha mão, entrelaçando nossos dedos e dizendo:
— Então... o que mora nas profundezas do iceberg?

...

¹. Faible et stupide... c'est moi. - "Fraca e estúpida... sou eu.", em francês.
². D'accord - "Ok", em francês.

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