8.2 - Senso de percepção falho

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Alison

Blake só liberou minha mão da sua quando entramos no meu loft.
Tranquei as portas atrás de nós e, assim que me virei de volta para ele, percebi que seu olhar agora tinha alcance a todas as minhas coisas, já que, com exceção do banheiro que foi construído depois, o meu loft se resumia apenas num grande e espaçoso cômodo que antigamente servia de estoque para a Heaven's.
E, ao que parecia, nada passaria despercebido, pois Blake fazia parecer que tudo ali merecia um tanto de sua atenção; Meus quadros e esculturas, tanto os que faziam parte da decoração, quanto os que eu havia empilhado em alguns cantos por não ter mais espaço para deixar em exposição, os meus desenhos, rascunhos e projetos inacabados em papéis, dispostos na área onde costurava e criava, minha mobília colorida, o case de jogos que Evan havia deixado por aqui, meus livros e revistas... até mesmo as madeiras desbotadas do assoalho o homem havia parado para observar com certa minúcia.
Algo me fez pensar que isso deveria ser estranho. Ter Blake Lowell assim, sondando minhas coisas, conhecendo este meu recanto pessoal em que havia passado muitas de minhas horas pensando nele mesmo, sonhando acordada com o que poderia dizer ou fazer se um dia o visse pessoalmente... Estas paredes guardavam muitos pensamentos embaraçosos e tê-lo aqui dentro delas tinha, sim, que ser estranho, mas... apenas não era.
Já havia percebido isso antes, mas minha mente continuava a reparar no quão confortável era estar em sua presença. Mesmo com a minha mania de falar demais às vezes e, agora, com o abarrotamento de "tralhas organizadas" do meu lar, ele nunca pareceu sequer tentado a julgar ou me desaprovar de forma alguma.
Era... agradável.
E pacífico, com certeza, já que até eu mesma tenho noção de que me tornei um pouco paranoica quando se trata de "apresentação". Só precisava aprender a acalmar meus nervos e normalizá-lo.
Acima de qualquer coisa, Blake Lowell estava se mostrando ser um cara gente boa e era isso que deveria ser levado em consideração.
— Preciso dizer, Alison... — começou, desviando seu olhar de divertimento do tapete laranja e felpudo da sala. — Este lugar é muito... você.
— Obrigada...? — Arqueei uma sobrancelha, sorrindo um pouco.
— Ah, é um elogio... Com certeza é um elogio. — Piscou um olho, bagunçando com minhas entranhas por um minuto.
O que acabou se estendendo, quando tirou o boné e remexeu os fios de seu moicano para arrepiá-los. Reparei que havia um pouco mais de cabelo nas laterais do que me lembrava já ter o visto permitir crescer, mas não estava reclamando, estava lindo assim também.
— Posso? — Apontou com o boné para o móvel azul ao lado do meu sofá.
— Claro, claro! Fique à vontade! — A resposta veio como um estalo e ele colocou o boné e os óculos em cima do móvel.
Sem sequer me dar algum tipo de aviso para me preparar, Blake estendeu a mão até a parte de trás de sua blusa, arrancando-a num puxão só. Consegui um vislumbre das letras "S" e "C", desenhadas a partir do alfabeto rúnico na linha de sua cintura, assim também como a âncora em suas costelas, mas apenas a parte inferior desta. E bem rápido também, como se estivesse me dando apenas uma rápida degustação visual.
Me senti tontear um pouco. Não apenas pelo o que presenciava ao vivo pela primeira vez, mas também me lembrando do dia em que nos conhecemos e ele usou sua camiseta para limpar meus óculos — que, aliás, eu havia decidido aposentar de vez depois daquela noite, tanto por preservação, quanto por questões estéticas. Hoje tinha conseguido ver um pouco mais, mas, naquele dia... eu havia sentido muito mais. Muitas memórias ainda muito vívidas... muitas sensações nem um pouco esquecidas...
Percebi quando Blake reprimiu uma risada e talvez isso poderia ter me incomodado mais, se não fossem meus olhos na regata esportiva que ajeitava no corpo. O símbolo e o nome da banda Megadeth estavam agora expostos e fazendo-o, enfim, parecer mais como si mesmo.
Somente me olhou de volta por alguns segundos, até finalmente inquirir:
— Posso usar o seu banheiro?
Apontei de pronto em direção ao cubículo ao lado do balcão que separava a cozinha, parecendo um robô com a reação automática. Para variar, eu estava agindo feito uma lunática obsessiva, mas agora isso implicava em meu lado anfitriã também. Precisava me recompor!
Resolvi me dar uma tarefa:
— Vou pegar alguma coisa pra gente beber e beliscar. Fique à vontade — repeti por impulso e corri até a cozinha, mal o dando tempo de assentir antes de entrar no banheiro.
Ignorei a instabilidade trêmula em meus joelhos quando me coloquei sobre eles, de frente para os armários baixos, até que paralisei quando o pensamento me ocorreu:
E agora?! O que Blake Lowell comia?
Tentei buscar dicas ou lembranças distantes sobre alguma curiosidade que tenha lido na internet, mas nada se assemelhava ao meu estoque de biscoitos orgânicos ou recheados, ou aos meus pacotes de balas de gelatina. Me arrastei até a geladeira, já sentindo certo desespero que não se aliviou muito quando me deparei com todas as minhas variedades de iogurtes e sobremesas. Eu tinha um problema com doces, que ainda estava em processo de ser solucionado.
— Então... como você acabou morando em cima do seu trabalho? — ouvi sua voz distante, quando saiu do banheiro. — Ou foi ao contrário, e você, na verdade, começou a trabalhar embaixo da sua casa?
Exalei uma risadinha, ainda nervosa.
— Não, quando me mudei pra cá já trabalhava na Heaven's. — Estiquei a mão até o pedaço enorme da torta gelada, salgada e natural no fundo da geladeira. Vinha degustando-a aos poucos, porque era maravilhosa demais e não era sempre que Kat tinha tempo ou disposição para me fazer outra, mas esta era uma ocasião especial. — Quando me formei na faculdade e deixei os dormitórios do campus, minha chefe disse que eu poderia ficar aqui se quisesse, porque, conforme a loja foi crescendo, este espaço foi ficando cada vez mais insuficiente para o estoque todo, como era utilizado antes — expliquei, enquanto lavava as mãos e depois dividia a torta ao meio, dispondo-a em dois pratos. — Tudo acabou ficando no prédio ao lado, quando Kat o comprou também e eu acabei ficando aqui, depois que esvaziou.
— Ah... — Soou mais próximo. — Katrina, não é? A sua chefe?
— Ela mesma.
— Então, ela é sua chefe, sua melhor amiga, a mulher que você acha que deveria ir num encontro comigo e... sua senhoria?
Me virei, encontrando-o sentado do outro lado do balcão, e levantei os dois pratos no ar.
— E ela também é uma ótima cozinheira, mesmo que só goste dessas coisas veganas. Um verdadeiro pacote completo, se alguém me perguntasse! — Pus os pratos no balcão, um bem a sua frente, e me voltei para a geladeira novamente, lembrando do suco natural de laranja que havia feito ontem à noite. — Se bem que ela não me deixa pagar aluguel, então acho que "senhoria" não entra no pacote. Eu só... moro no comércio dela — concluí, rindo um pouco, e ele sorriu para mim, parecendo concentrado, por algum motivo.
— Legal da parte dela então.
— Sim, ela é legal... — concordei, mas pensando e desaprovando este "momento de distanciamento" que ela resolveu me subjugar.
Ouvi Blake exalar uma risadinha e levantei meus olhos dos copos onde despejava o suco.
— Dá pra ver mesmo pela sua cara como ela é legal. — Sorri sem graça, colocando os dois copos ao lado dos pratos.
— Não, ela é a melhor, de verdade! Só... se preocupa demais comigo, eu acho. — Puxei um dos bancos para me sentar a sua frente e só aí ele buscou pelo garfo em seu prato.
— Você acha?
— Tenho certeza, na verdade — corrigi, pensando na discussão que tivemos no carro. — Se preocupa demais, mesmo quando não tem porquê.
— Hmm... — Percebi sua curiosidade implícita e decidi esclarecer.
— É em relação ao encontro às cegas. Com você. — Levantou seus olhos bonitos para mim. — Ela confunde demais todo este... fascínio que eu tenho por você.
— Ah... ela confunde...
— Sim, ao mesmo tempo que também não gosta do meu namorado. Então, por conta do que aconteceu quando, ahm... nos conhecemos — me referi ao beijo, com os olhos na minha torta —, ela se apega demais em qualquer "sinal de separação", mesmo que eu continue repetindo que o que aconteceu entre você e eu foi apenas momentâneo.
Levei meu garfo a boca e tive vontade de fechar os olhos de satisfação. Meu estômago despertou com um ronco, como se só agora notasse que estava faminto. Ao que parecia, meu senso de percepção estava um tanto quanto falho hoje.
— Bem... se ela não quer, então melhor deixar isso de lado — ele murmurou, desanimado, e eu me apressei em explicar:
— Ah, não, ela quer! Com certeza, quer! Só não sabe ainda. — Quem diabos não iria querer?!
— Como disse, ela só está se preocupando comigo sem necessidade. Além disso, se ela tivesse me dado alguma outra razão, ou simplesmente tivesse me dito que não tinha interesse, eu não estaria insistindo. Mas eu sei que ela ainda vai me agradecer por isso.
— Se você diz... — Finalmente comeu um pedaço da torta e seu rosto se transformou em genuína surpresa. — Uau!
— Sim! — Assenti apenas com um sorriso, demonstrando que entendia.
O resto do nosso "lanche matinal" ocorreu de maneira tranquila.
Quando perguntei a Blake sobre o que disse que queria conversar mais cedo ele não conseguiu exatamente se ater a um só assunto. Primeiro me contou que esteve no consultório de uma terapeuta esta manhã para tratar de sua agorafobia e acabou descobrindo, já na primeira conversa, que, na verdade, não apresenta sinais de fobia e, sim, de... "desconforto social". Mas a doutora lhe disse que era muito cedo para concluir ou excluir qualquer possibilidade.
Me contou também as novidades que ouviu de Mackley sobre o andamento do novo álbum da Sleep Kickers e sobre o — asco — relacionamento de Bianca e Tom Clyde, mas, assim que percebi seu astral escurecendo, tratei de mudar de assunto perguntando sobre Beth.
Este foi o tópico que mais perdurou. Começou me perguntando se era normal que a filhote dormisse e comesse tanto assim e logo o tranquilizei dizendo ser até mesmo saudável. Relatou então sobre sua mudança para o próprio apartamento. Disse que, mesmo que os cômodos não fossem muitos e nem um pouco espaçosos, Beth simplesmente havia se habituado em correr para todos os lados, escalar todas as beiradas, pular e se enfiar em todo canto que pudesse como se estivesse no American Ninja Warrior.
— E ela também gosta de derrubar e destruir coisas — completou. — Tranquei todos os meus instrumentos, aparelhos de exercícios e outras coisas importantes dentro do quarto de hóspedes por enquanto, porque ela simplesmente pensa que tem o direito de coçar as unhas em tudo!
Era provável que pudesse ter uma crise mais tarde, remoendo o pensamento de que eu havia tido esta péssima ideia. Mas, por hora, me mantive distraída demais me encantando com a alegria estampada em seu rosto ao me contar sobre todo este "transtorno".
A conversa só amenizou quando ele pareceu hesitar em algum assunto que eu desconhecia e assim permaneceu por um tempo, chegando a se distrair novamente com o acúmulo de coisas pelo loft.

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