17.2 - O meu jogo

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Caleb

— Evan chorou?
A calma de Katrina ao assentir contrastava a minha indignação.
— Não é a primeira ou segunda vez que Alison me diz que ele chorou feito uma criança. E ontem à noite, aparentemente, ele se superou — comentou, sorvendo um gole d'água de seu copo descartável logo depois.
— Puxa, quem diria?! Quero dizer, ele é humano, mas, sei lá...
— É estranho imaginar, com toda aquela pose de valentão, sei como é — Kat concluiu por mim. — Por isso não condenava demais o fato da Ali gostar tanto dele, apesar de viver frustrada com isso. Eu não posso culpá-la, eles têm história, transparência... essas coisas.
— Mas agora acabou — disse, por um momento pensando no que essa realidade implicava, mas Kat não me deixou ir muito longe:
— Não exatamente. Ali ainda tem sentimentos por ele, obviamente, e disse que a razão pelo término era pelo bem dele, para que pudesse ajudá-lo... — Balançou a mão livre no ar, indicando que as explicações iam além. — Mas eu vou tentar incentivá-la a seguir em frente, sabe? Sair mais de casa, viajar, conhecer pessoas... alimentar outros sentimentos. — Me olhou de canto por um segundo, mas logo se voltou para a multidão ao longe.
Depois que Alison saiu, algum tempo atrás, Kat e eu nos afastamos da exposição e das pessoas dispersas entre as fotos, nos escorando ao lado do filtro de água da galeria. Só o que fizemos foi conversar sobre Alison e seu término, como parecia ser de praxe entre nós dois mesmo entre mensagens de texto, quando elas aconteciam. Sempre falamos sobre a vida alheia, mesmo que o assunto divergisse.
E não havia nada demais nisso. Quero dizer, eu nunca dei a mínima para fofocas, mas as preferia, quando se tratava de conversar com Kat porque, no segundo em que se tornava pessoal, que me lançasse um olhar direto ou me fizesse perguntas que me diziam respeito, a coisa começava a ficar preocupante e desconfortável.
Agora, por exemplo, depois de uma mínima analisada que, para qualquer um, pareceria sem propósito, eu havia me pegado olhando para as minhas próprias roupas, procurando amassados nas calças sociais, botões em falta na camisa de seda, manchas nos sapatos brilhantes... qualquer coisa que pudesse reprovar. E não fazia sentido!
Principalmente para mim, que costumava ser o "superior" em qualquer situação, e para Katrina, que sequer parecia consciente da minha atribulação desconfortável.
Será que era este o motivo da atração estranha? Será que eu havia sido superado no meu próprio joguinho mental? Era só disso que eu precisava, sua aprovação?!
— Seus pensamentos estão quase gritando, de tão altos — Kat riu, camuflando um pouco sua curiosidade. — Se importa em traduzir para mim? O que eu disse que te fez ficar tão quieto assim?
Engoli em seco, encostando na parede fria atrás de mim.
— Viagem. Você mencionou e eu acho que é o que eu deveria fazer também. — Óbvio que não era o que se passava na minha mente, mas deveria. Melhor que só pensasse em voz alta então. — Um representante me ofereceu uma proposta interessante para acompanhar e fotografar um festival de música eletrônica por duas semanas. — Dei de ombros. — Estou pensando em aceitar.
O rosto de Katrina se acendeu com um lindo sorriso.
— Uau, uma rave? Isso realmente é interessante! Eu nem sabia que contratavam fotógrafos para essas coisas.
— Nem eu. E olha que já estive em várias. Mas essa parece ser grande coisa. — E me afasta da pertubação mental que você se tornou por duas semanas. Diante da expressão gentil e interessada de Katrina, no entanto, isso me pareceu algo cruel de se pensar. Suspiro. — Mas, então, o que você acha? Me aconselharia aceitar?
— Quem? Eu?! Ah, sim! Claro... — Desviei o olhar quando ela lambeu o lábio inferior, antes de continuar: — Não seria algo que eu faria, mas apenas porque não é o meu tipo de ambiente, sabe? Mas se você já está acostumado e interessado, uma oportunidade é uma oportunidade, não é?
— É, foi o que pensei também. Isso e o fato de serem só duas semanas. Posso me comprometer com o festival e terei tempo de aceitar alguma outra proposta que não tenha início imediato.
— Te ofereceram muitas dessas? — Arqueou uma sobrancelha loira.
— Duas... que me despertaram interesse. Uma em uma revista de moda, lá pelo centro, e a outra era algo sobre projetos independentes, como estes em exposição hoje. Ambas são para quase o fim do próximo mês, por conta de contratos e essas burocracias.
— Oh... — Kat piscou surpresa, até que sorriu novamente. — Isso é ótimo, Caleb. Parabéns!
Você bem disse que essa exposição seria uma grande coisa, que bom que estava certo. Estou feliz por você! — Empurrou meu ombro com o seu levemente e eu mordi um sorriso, tentando não prestar atenção no meu rosto que esquentava.
— Valeu, Kat — murmurei, logo pigarreando quando minha voz soou sobrecarregada.
Meu Deus, será que eu ficaria muito mais patético do que isso?
— Então, estava pensando no que você disse sobre seu irmão... por que você disse que Alison e eu seríamos incentivo para mais tarde? Ele disse alguma coisa... sobre ela? — acrescentou, num murmúrio e, fácil assim, era como se nuvens cobrissem o sol da minha alegria de um segundo para o outro.
— Ahm, não... eu na verdade não cheguei a especificar pra ele que seria uma festa — respondi sem olhar para ela. — Ele prefere privacidade e vive usando a fama de desculpa pra isso, mas eu sei que é só uma coisa dele mesmo. Ele ficaria só para me agradar, se eu insistisse do jeito certo, mas seria legal se ele tivesse pessoas para se enturmar também e, sei lá... vocês fazem mais o tipo dele do que o restante das pessoas que costumam aparecer.
— Ah, ok... Eu sei bem como é isso, de fazer as coisas só para agradar os outros. — Kat se recostou também. — Por conta da Alison, eu quero dizer. Não pela minha própria irmã mais velha, obviamente. Ela não moveria uma palha para me agradar. — Suspirou, seus olhos expressando certo cansaço por um momento que me lembrou do dia em que apareceu na minha casa, durante a noite. — Mas, tudo bem. Alison também está sempre fazendo o mesmo por mim.
— Sorriu, pensativa.
Desviei o olhar, sem conseguir comentar absolutamente nada sobre o que me confidenciava, por mais que quisesse.
Interação nunca foi algo complexo para mim antes. Apenas com uma única pessoa, a qual estava a muito tempo no passado e a que minha mãe passou a vida me dizendo que eu não tinha obrigação nenhuma de agradar.
Mas, quando Katrina sorria daquela maneira acentuada, como se sua expressão de agrado fosse mais para si mesma do que por qualquer pessoa com quem estivesse conversando, eu me sentia daquele mesmo jeito do passado: acuado, assustado, inseguro... buscando por uma validação que simplesmente não me pertencia.
Sim, uma mulher genuinamente boa e agradável, que não tinha culpa do que quer fosse este meu rebuliço interior, me fazia sentir da mesma maneira que o miserável que me abandonou.
Isso era fodido e confuso pra caramba!
E, honestamente, estava começando a me cansar.
Fosse o que fosse, não era este o rumo que as coisas teriam de tomar, não era assim que eu deveria me sentir em relação a ninguém.
Foi aí que, já dentro de um silêncio que para mim estava desconfortável, a salvação se apresentou entre as pessoas que iam e viam na exposição, em um hesitante, mas familiar par de olhos de oliva.
Daniel acenou para mim ao longe, de frente para uma das minhas fotos, mas com a atenção completamente focada em mim.
Como se só estivesse esperando que o olhasse de volta. Como se, internamente, estivesse berrando pela minha atenção. Pela minha validação.
Este era o jogo que eu sabia jogar e o alívio foi mais do que bem-vindo.
Abri um promissor sorriso torto para ele, antes de me virar para Kat e dizer:
— Preciso... cumprimentar um conhecido, sim? Já volto.
Ela assentiu de maneira gentil, ainda completamente alheia às entrelinhas, logo buscando por seu celular na bolsa de mão e esquecendo da minha existência no mesmo segundo.
Voltei-me novamente para Danny, ainda atento em minha direção.
Não queria me enfiar no meio das pessoas e acabar sendo abordado para mais alguma parabenização ou proposta — ambos muito bem-vindos, mas não no momento —, então apenas apontei com o queixo em direção ao banheiro masculino, no final do corredor no qual logo desapareci, mas não antes de vê-lo começar a me seguir, como a presa obediente que era.
Verifiquei as quatro cabines dentro do banheiro, me certificando que estavam tão vazias quanto o restante do cômodo, e uma rápida olhada para o espelho que tomava o espaço acima das pias me mostrou todo o apelo visual que eu estava acostumado que me encarasse de volta; Desde o cabelo despontado, hoje arrumado para o lado, até todo o corpo firme e mais do que satisfatório coberto pelas roupas de grife que, não, não possuíam falha alguma, como alguma alucinação me fez antes considerar por um momento. Esta era a minha visão de sempre, este era quem eu era:
fodidamente fantástico!
De agora em diante, sem mais espaço para incertezas.
Vi pelo espelho quando a porta começou a abrir, mas não me virei de início. Apenas esperei, enquanto Daniel aparecia, trancava a porta e dava seus primeiros passos hesitantes, em minha direção.
Ele estava vestido como sempre: camiseta cinza com o símbolo da PlayStation, jeans surrados e um par escuro de tênis esportivos. Nada mais, nada menos. Mas, ainda assim, com suas mechas naturalmente laranjas, caídas e disformes, e os brilhantes olhos claros perdidos entre as inúmeras sardas em seu rosto, Danny estava como sempre esteve: clamando involuntariamente por todas as atenções. Desde a primeira vez que o vi, em um clube de strip ao que parecia um milhão de noites atrás, era assim que ele era.
Como todas as outras pessoas, ele possuía seu próprio enigma: era tão unicamente bonito, gostoso de verdade, sem aquela aparência forçada de quem passava horas na academia, e simples em seus gostos, na maneira de se portar, alguém realmente agradável de se olhar e manter por perto... mas nunca o primeiro a se sentir confortável o suficiente para dizer "oi", mesmo que quisesse muito.
E eu também não dizia, porque nunca precisei tomar iniciativas. Então assim sempre permanecemos: trocando olhares que diziam tudo.
O seu retraído reflexo logo se encolheu ainda mais, entendendo o recado, e então Danny estava se aproximando e... prostrando-se de joelhos.
Agora, sim, estava me virando de frente para ele, olhando-o por cima. O verde bonito de seus olhos, agora mais intenso e vivo, parecia jamais ter conhecido alguma hesitação, e somente necessidade. Logo a conexão com o desejo exigente em meus olhos se quebrou, no entanto, focando-se em suas próprias mãos, que começavam a trabalhar no fecho do meu cinto.
Estávamos em um local público, então isto teria de ser rápido, conciso, sem cerimônia alguma.
E exatamente assim seus dedos agiam.
Era sempre fácil com ele. Um olhar e Daniel entendia. Um comando silencioso e ele já estava o cumprindo. Um mínimo gesto e ele estava seguindo até o fim. Até a minha liberação.
Porque este era outro detalhe, mesmo que nunca tivesse implicado isto em momento algum, Daniel parecia gostar de ser aquele que permanecia abaixo. Inferior. E foi por isso que decidi não verbalizar quando pensei em como estava feliz por ele ter aparecido aqui hoje. Poderia ser algo imbecil, mas eu precisava de algum senso de superioridade, mesmo que por alguns minutos.
Ele não queria se sentir bem-vindo. Queria implorar por um espaço, de joelhos. Então o que eu poderia fazer, senão aproveitar?
Nossa dinâmica simplesmente funcionava e esta resolução me afogou numa espécie de satisfação.
Mas foi apenas a primeira que obtive antes que sua boca me presenteasse com todas as próximas.

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