16.1 - Eu disse "talvez"

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Alison

Era um chalé comum, de madeira. Nada muito especial, sabe? Mas meu violão estava lá, em uma das almofadas grandes, no chão da sala pequena, então eu sei que era meu. Havia também um tapete confortável e... era isso. Nada mais, nada eletrônico, nem sequer uma lâmpada. E, ainda assim, não era escuro, a luz, completamente natural, iluminava através da parede de vidro da casa, que sempre me pareceu ser o único luxo da imagem toda... e o lado de fora costumava mudar, mas sempre envolvendo água. Nas primeiras vezes eram lagos, a casa parecia estar no meio de um bosque, ou algo assim. Mas acontecia de ser uma praia deserta às vezes ou uma piscina comum... Ou simplesmente chuva forte em um gramado bem verde. Eu não sei... era sempre nebuloso, nunca havia sol forte e isso era bom. Eu gosto da chuva, de água, em geral. A visão me deixava... feliz.
Minha voz transpareceu o leve sorriso que estava em meus lábios:
— Imagino... isso é muito lindo, Blake! Todo este cenário... soa muito bonito. Você sonha com isso a muito tempo?
Desde que consigo me lembrar. Mas parou de acontecer, depois de um tempo. Foi mais uma coisa da infância e adolescência mesmo.
— Ah, que pena...
Eu também pensava assim, mas, sei lá... — O ouvi expirar tristemente do outro lado da linha. — Preferia nunca mais ter sonhado com isso, se soubesse que estragaria tudo assim.
Me virei de barriga para baixo na minha cama, cuidando para não desgrudar o celular da orelha.
— Ah, é mesmo. Você começou dizendo que sonhou com isso de novo, não foi? Foi... uma versão diferente, desta vez? — perguntei, franzindo as sobrancelhas para o assunto, enquanto admirava com distração minha boneca princesa sentada no móvel de cabeceira, onde decidi que seria seu lugar. O livro e o caderno que Kat havia me dado estavam a seu lado, um em cima do outro.
Bom, sempre é diferente, por conta do exterior. Mas, desta vez, toda a água estava dentro da casa, inundando o lugar. Havia sol forte do lado de fora, e todas as minhas coisas, as poltronas fofas, meu violão, o tapete... tudo estava flutuando quebrado, imerso na água. Acordei me sentindo sufocado desta vez. — Senti o pesar melancólico em seu tom de voz e isso refletiu em mim. — A culpa foi minha, eu... estraguei o sonho que me tranquilizava. Só o que eu vejo agora quando penso nisso é destruição.
— Como isso pode ter sido sua culpa, Blake? A gente não controla o que sonha.
Sim, mas, como eu disse, fazia muito tempo que não sonhava com isso. Só aconteceu agora porque decidi transformar a imagem toda numa música. Sabe? O tempo todo em que estive com Bianca, eu sequer pensei nesse sonho, mas depois que terminamos e todas as outras merdas com a banda aconteceram, eu não conseguia mais encontrar inspiração pra escrever nada, nem para tentar me fazer útil de longe pelo menos. Só o que tinha era a memória deste sonho, então era o que eu vinha revirando há meses, tentando transformar em música. Mas, algumas noites atrás... isso aconteceu. O sonho se destruiu de tanto que o desgastei pro meu próprio benefício. Foi estupidez minha.
— Ah, acho que você está sendo muito duro consigo mesmo, Blake! Talvez tenha acontecido assim agora por algum outro motivo, vai saber? Sonhos são só manifestações do nosso inconsciente, no final das contas. O que você está sentindo agora? Talvez isso tenha refletido de alguma forma no seu sonho. Talvez algo esteja te sufocando... "inundando" sua mente, por assim dizer...
É... isso faz um pouco de sentido, na verdade — murmurou, soando reflexivo.
— Eu disse "talvez" — frisei, não querendo que se baseasse apenas no que eu dizia.
Você será aquela que me salva...¹ — recitou e não consegui segurar o riso, ao reconhecer de imediato.
— And after all... — continuei a letra e ele me acompanhou, ambos cantando juntos agora: — You're my wonderwall...²  Aproveitamos alguns segundos apenas rindo juntos, até que sugeri, ainda sorrindo:
— Eu acho que você deveria terminar a música. A sua, eu quero dizer. Sobre a casa.
Eu não sei... não estava tendo muito sucesso nisso, de qualquer forma. Parecia que algo estava faltando...
— Bom, como eu disse, manifestações do inconsciente, não é? Quem você é hoje, não é o mesmo da infância. Sabe o que eu acho? Talvez o seu eu de hoje sonhe com mais do que esta casa simples e bonita para o futuro, por mais confortável que ela pareça. A questão é: se você terminar a música, mesmo que não seja "material para a Sleep Kickers" — fiz aspas no ar, revirando os olhos um pouco —, você estará estimulando sua criatividade. Kat me disse hoje à tarde que era uma boa ideia usá-la para resolver nossos problemas internos, mesmo quando ela não parece estar colaborando muito com a gente. — Lancei outra olhadela para o livro, pensando no assunto.
É, aceitando ou não, é um bom conselho. Talvez eu termine a música então... Quero dizer, já estava na metade mesmo.
O pedido para que cantasse para mim agora coçou na ponta da minha língua, mesmo que tivesse quase certeza que sua resposta seria "não".
Além de, obviamente, este processo não estar sendo uma experiência agradável, eu bem conhecia certos tiques que nós, os artistas, temos. E um dos mais clássicos deles era não expor sua obra antes de terminá-la. Ou se sentir pronto. Ou simplesmente nunca expor. Às vezes se torna pessoal demais e nada se pode fazer, além de respeitar.
Mas, nossa, como eu adorava a voz dele... A ligação de ontem à noite foi maravilhosa e me fazia querer aproveitar qualquer e toda oportunidade que tivesse de tê-lo cantando para mim. Até porque, não vamos nos esquecer, este cara ainda é o meu ídolo! Isto não deixou de ser relevante.
No entanto, assim que me alcançou o pensamento de que apenas conversar com ele já era algo inimaginável, esta alegria acabou se apagando também, pois logo ouvi as portas do meu loft se destrancarem atrás de mim.
Me retorci na cama, oferecendo um pequeno sorriso para Evan e ele piscou um olho para mim, se virando para trancar as portas de volta.
— Acho que tenho que desligar agora... Evan finalmente chegou — avisei, tentando não evidenciar meu lamento.
Ah... já? Ok, tudo bem, então — Blake não disfarçou o dele. — Você vai na exposição do Caleb amanhã?
— Com certeza! — O entusiasmo voltou com o tópico. — Estou ansiosa pra ver as fotos dele lá, enormes, nas telas! Ele fez um trabalho excelente!
Fez mesmo! Ele é ótimo no que faz, sempre disse isso pra ele — contou, com uma presente pontada de orgulho.
— Te vejo amanhã por lá, então? — Me coloquei sentada e mordi o lábio, esperançosa.
Ahm... não tenho certeza — Blake receou. — Eu vou mais cedo, antes da exposição abrir para o público. Caleb disse que não precisava, mas eu sei que ele estava com medo da minha presença desviar o foco das pessoas. Esse tipo de coisa já rolou muito antes, a gente até evita comemorações que não sejam apenas entre família, então...
— Ah, ok. Entendi. — Meu ânimo decaiu profundamente de novo. — Acho que te vejo outro dia, então.
Sim, claro. Até outro dia, Alison. Tenha uma boa noite.
— Você também. Obrigada.
Desligamos e inspirei, um pouco chateada. Estava esperando fazê-lo se encontrar com Kat amanhã, na exposição e... eu mesma queria vê-lo, simplesmente. Meu ídolo, lembra?
No entanto, o perfume agradável de Evan amenizou minha aura em geral, tomando toda a minha atenção, principalmente quando ele se sentou ao meu lado.
Ainda assim, meu sorriso era hesitante, quando me virei para observá-lo.
Eu não sabia se ele estava bravo, por seja lá o qual for o motivo — se tratando do meu namorado, pouquíssima coisa poderia levá-lo de oito à oitenta com facilidade — e também não sabia se tinha ouvido atualizações sobre seu pai, que estaria recebendo hoje os resultados da análise da amostra de pele que seu dermatologista havia colhido, para saber o quão grave estava a situação.
Dependendo do que sabia sobre isso, esta poderia ser a razão da sua fúria da vez. E eu também precisava destas notícias, por uma série de razões diferentes.
— Oi, querida — ele cumprimentou, entretanto, com um tom de voz que só não era mais suave que sua expressão.
E não tive tempo de assimilar o quanto nada disso era estranho em Evan, porque ele mal me deixou soprar um "oi" fraco de volta, para abafá-lo de volta com a sua boca na minha.
Isso, pelo menos, não era tão inesperado assim.
Fora o beijo de ontem que começou cheio de promessas e terminou em seu "abalo emocional", na manhã de hoje, Evan havia se despedido de mim da mesma maneira que agora me cumprimentava: roubando todo o meu fôlego sem uma centelha da vacilação ou falta de vontade que antes sempre marcavam presença quando ele se aproximava de mim.
Agora meu namorado segurava meu rosto perto do seu, aprofundava nossos lábios com confiança, me abraçava, acariciava... me fazia arrepiar dos pés à cabeça e não parecia ter intenção alguma de parar.
Mas, parou, eventualmente. Com um sorriso travesso e preguiçoso que faria qualquer garota cair apaixonada por ele com nada além.
Você está tornando as coisas mais difíceis para mim — quis dizer, porém segurei minhas palavras. Tomaria meu tempo para fazer o que precisava. Nós dois merecíamos isso.
— Seu pai? — quis saber, antes de qualquer coisa.
Evan baixou os olhos, unindo nossos dedos no meu colo. Seu sorriso enfraqueceu, mas não sumiu por completo e eu não queria tomar isso como um bom sinal, para não me encher de esperanças, mas acabei fazendo isso inconscientemente.
— Bom, você sabe como ele é... Teimoso e durão demais em qualquer situação. Ele não está diferente disso agora.
— Parece alguém que eu conheço — brinquei e ele exalou, rindo.
— Pois é. Mas você tinha que me ver hoje, no trabalho, enquanto esperava minha mãe ligar pra me informar sobre a análise... — Arqueou as sobrancelhas, tomando uma respiração profunda.
— Nem um pouco durão.
Meu espírito caiu, imaginando, e quando questionei, cuidei para não deixar transparecer o início de aflição que já se formava no meu âmago:
— Más notícias?
Evan hesitou.
— Ahm... poderia ser pior, eu acho. — Lambeu o lábio inferior, parecendo escolher suas palavras. — Eu não quero te assustar, Ali. De verdade. Porque o dermatologista, junto do oncologista, passaram quase uma hora conversando com meus pais exatamente para isso: evitar o desespero.
Tentei forçar uma respiração para fora.
— Então, só me conta. É muito grave?
Pode se tornar muito grave. Mas não é. Quimio, obviamente, todo aquele processo angustiante da primeira vez, tudo de novo. E... cirurgia. — Sua respiração vacilou e ele soltou minha mão para bagunçar os cabelos em nervoso.
— Então dá pra resolver com cirurgia de novo. Ótimo! — exclamei, tentando me sentir aliviada, mas não conseguindo, pela sua expressão ainda tensa. — Mas tem mais, não tem? Qual é o problema?
Puxou minha mão até sua boca, plantando um beijo no dorso. Seus lábios agora estavam frios.
— Não, não tem nada mais. Eu só estou preocupado com a parte da cirurgia, é que... — Arfou.
— O quê?... "É que", o quê, Evan? — Apertei seu antebraço, impaciente.
Evan inspirou e soltou uma longa lufada de ar e, aflita como estava, quase gritei para que parasse com essa coisa que estava fazendo com a respiração e apenas me contasse o que estava acontecendo com o seu pai que eu amava como amei o meu!
Mas ele não se demorou mais:
— Basicamente o médico disse que a coisa agora está crescendo com mais rapidez no pé dele e... só remover a pele afetada, dessa vez, talvez não será suficiente. "Talvez", não, aliás... é quase certeza — Evan pareceu ponderar mais uma vez, mas fechou os olhos, quando apenas disse: — Provavelmente terão que remover o pé todo dessa vez.
Minha visão escureceu e eu deixei que a informação realmente infiltrasse em minhas cognições.
Cinco segundos do entendimento se passaram. Mais dez. Vinte. Quase um minuto!
E eu ainda não tive forças para reagir. Minha cabeça, ainda em processo de compreensão.
— Ali? Tudo bem, querida? — Evan acenou os dedos na frente dos meus olhos e eu pisquei com o movimento. Várias e várias vezes. Meus olhos estavam ardendo... — Olha, eu sei que é demais pra digerir. Eu fiquei assim também, quando minha mãe me contou, mas...
— Quais as chances de remissão? — interrompi, perguntando bruscamente. Precisava desta resposta. Como eu iria me sentir com essa bomba que ele havia me lançado? Dependia totalmente desta resposta. — Ele vai vencer de novo, não vai?
— Com a cirurgia? É quase certeza que sim. As chances são muito altas, se tudo correr da forma esperada.
Lambi os lábios, percebendo só agora o quanto minha boca estava seca.
— E do que ele precisa, pra tudo ocorrer da forma esperada? Seja o que for, ele vai ter. Só me diz.
— Bom, já te contei do tratamento e da cirurgia, e você já sabe da longa recuperação, e aí ele vai ficar fraco de novo, então nutrição adequada também, consultas com outros especialistas...
essas coisas, como da última vez. — Expirou com dificuldade. — E... ajuda. Com a oficina da família... ele já está aposentado, mas, você sabe, se aquilo tiver de fechar as portas, isso, sim, o mataria, então eu... — Expirou novamente, dessa vez com menos imponência, deixando sua frase inacabada.
Mas, isso, ele não precisava me contar por completo. Eu soube exatamente o que quis dizer:
— Você vai ter que voltar. Para o Maine. Pra assumir a oficina.
Evan me olhou com pesar, dando de ombros.
— Não é como se os planos de independência com a oficina do Rob estivessem vingando, não é?
— Sim... o momento não poderia ser mais propício, na verdade. — Suspirei, deixando meus ombros caírem pelo meu próprio significado nestas palavras.
E, como costumávamos fazer no passado, quando éramos crianças que se tornavam adolescentes e depois adultos, antes de começarmos a namorar, mais especificamente... Evan apenas entendeu o que se passava na minha mente também.
E, aparentemente, não era algo que o agradava, pois questionou, com amargura:
— Então, nós vamos voltar... não é?
Respirei fundo e me permiti fechar os olhos, descansando-os por um momento.
— Ali...? Você vem comigo, querida... não vem?
Me virei na cama, só me permitindo olhar quando já estava de costas para ele, alcançando o livro e o caderno no meu móvel de cabeceira.
Fitei a capa rosa, com o enorme coração branco, todos os desenhos em volta...
Ok... talvez não fosse o melhor momento. Talvez esta escolha não seja a correta.
Todo este processo infundado — apenas aparentemente — pelo qual Kat me fez passar, me dizia que talvez fosse o contrário. E eu me sentia assim também... apenas talvez.
Mas então por que a dificuldade disso ainda era tão... certa?
Me virei de volta para Evan, ainda analisando os desenhos, para não ter que encará-lo.
— Alison?...
Eu te amo demais — pensei, mas, ao invés de complicar ainda mais para mim, esta consciência acendeu uma ideia na minha cabeça.
— Eu quero te mostrar um lugar — revelei, pensando em nós dois.
Parecendo um pouco surpreso, mas satisfeito, ele apenas assentiu.
Sorri um pouco, estudando por um momento o seu lindo rosto, quase sempre tenso, por algum motivo. Agora ele estava preocupado.
Minha intenção era alentá-lo, mas o aquecer familiar em meu peito apenas me deixava feliz e meu sorriso aumentou.
Esse sentimento... esta confortável segurança... isso, sim, era certo de que jamais iria morrer.
Ainda estávamos e ficaríamos bem.

...

¹. Alison disse "eu disse 'talvez'", que, em inglês, é exatamente igual ao verso da música "Wonderwall", do Oasis, por isso Blake completou: "I said maybe... You're gonna be the one that saves me";
². Ainda versos de "Wonderwall"; Traduzido "E depois de tudo... Você é minha protetora".

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