Tradutora?

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Eu estava atrasada. Muito atrasada.
Meu cabelo não parecia se importar muito com a minha correria, pois estava uma bagunça. Soltei um suspiro, e fiz o meu melhor para lidar com ele, fazendo uma trança simples de três partes. Realmente miserável, mas era a trança ou andar com um ninho de ratos por ai.
Sim, a trança soava divina.
Nunca agradeci tanto pelo meu apartamento ser minúsculo, porque assim não precisei percorrer um grande caminho até a porta. Peguei minha bolsa no caminho. Um Thor muito irritado miou e sai da minha frente antes de ser jogado para o alto.
Felizmente não precisei esperar pelo metro, ou entraria em colapso. Ontem depois de correr tinha levado alguns trabalhos da faculdade e meu notebook pré-histórico para o sofá, mas acabei dormindo antes que pudesse fazer qualquer coisa.
Foi quando percebi que não tinha tomado banho. Cheirei a mim mesma discretamente tentando decidir se estava ou não fedendo. Para piorar notei também que não tinha escovado os dentes. Revirei minha bolsa e encontrei um tablet de trident.
Teria que servir.
Meu segundo dia e eu estava atrasada como se o fiasco de ontem não tivesse bastado. De todas as almas para agredir, Jesus Cristo me enviou logo a daquela doce criatura.
Que humor de merda, Deus.
Eu esperava que o universo se redimisse comigo, mas com a minha sorte eu estaria sendo chutada tão logo pisasse na empresa.
Seja como for iria vestir minhas calças de menina grande e lidar com isso.
***
Mostrei meu cartão de identificação para o segurança só no caso dele querer me arrastar para longe. Suspirei em alivio e corri para os elevadores.
Um mar de desculpas invadiu minha mente.
‘’ Me desculpe pelo atraso Sr. Mabuchi’’
‘’ Isso não vai se repetir’’
Cada uma delas fugiu quando as portas se abriram, porque diante de mim estava Gregory Mabuchi.
Bom Jesus, eu estava perdida.
Seus braços estavam cruzados na altura do peito, parcialmente recostado na minha mesa. Olhos observando, quando pisei para fora dos elevadores.
- Venha para minha sala – disse. Sua voz profunda não deixava margem para argumentos – não que eu tivesse qualquer argumento, e por esse motivo obedientemente o segui.
Limpei a garganta.
- Claro.
Esperei que ele sentasse antes de recomeçar a falar.
- Eu tive um inconveniente, lamento e isso não vai se repetir.
A cena do elevador surgiu em minha mente e eu desviei o olhar.
- Não acha que eu mereço algo melhor?
Levantei minha cabeça. Ele estava digitando alguma coisa no computador. Quando ele não explicou o que queria dizer, me obriguei a falar:
- Desculpe, não sei se entendi o que está tentando dizer.
- Não acha que mereço uma justificativa melhor, senhorita?
Alisei meu vestido ganhando tempo. Seus olhos acompanharam o movimento, e sua sobrancelha levantou esperando uma resposta. – Você está uma hora atrasada – prosseguiu.
- 45 minutos atrasada – eu corrigi incapaz de me parar.
Ele riu. Não um riso agradável. Um riso debochado que me fez querer abrir a porta e correr.
- Suponho que isso torne tudo melhor em sua concepção, não é mesmo?
Engoli em seco. Ele queria me fazer sentir inferior como vingança? Bem, estava conseguindo.
Céus, eu queria colocar uma nova marca em seu rosto. Como se lesse meus pensamentos, bastardo arrogante tocou distraidamente na bochecha em que meus dedos ficaram desenhados ontem. Não havia mais marcas estragando seu rosto exótico hoje.
- Sem resposta? – indagou. O computador esquecido. Toda sua atenção estava em mim.
- Eu já disse que isso não vai mais se repetir. – Meu sotaque se tornou mais obvio na minha voz. Como sempre se torna quando eu fico nervosa. Uma garota do sul não pode esconder suas raízes por muito tempo. Inglês ainda era uma língua estranha para mim, apesar de ter ouvido meu pai falando-a por anos.
Mabuchi ajeitou sua gravata deixando-a ainda mais impecável.
- Me dê um motivo para que eu não chame os seguranças e lhe expulse da minha empresa.
Odiei a arrogância, em seu tom, mas não podia me dar ao luxo de perder esse emprego. Eu precisava de segurança financeira por pelo menos mais dois meses, e quem sabe se tudo desse certo, eu pudesse manter-me por mais algum tempo em NY depois da faculdade acabar.
- Eu preciso desse emprego – respondi baixinho com sinceridade.
Sua resposta não demorou um segundo. – Você não pareceu precisar do emprego quando me agrediu. Eu demiti pessoas, por menos que isso, o que lhe faz pensar que você não vai se juntar a população de desempregados do país?
O pequeno fiapo de paciência que eu tinha, começou a arrebentar.
Cerrei os dentes. – Você me ofendeu. O que eu supostamente deveria fazer?
Eu estava com raiva e bom Deus, o homem mal tinha dito algumas frases. Para o meu terror, ele tirou o telefone em sua mesa do gancho.
- Essa é sua resposta? – ele me deu um sorriso falsamente doce.
Rapidamente ponderei minhas opções: Humilhar-me, ou voltar para o Brasil sem meus estudos concluídos. Imaginei meus pais enfiando dinheiro na minha bolsa, sem que eu percebesse e depois negando a origem de como ele tinha ido parar ali.
- Por favor – eu disse mordendo de volta a dignidade que queria sair e me calar – me deixe provar que apesar dos... Uh dos últimos acontecimentos eu posso ser uma boa funcionária.
Tomei como um bom sinal o fato de ele ter posto o telefone de volta em seu devido lugar.
Eu não queria ser levada por seguranças até a saída de lugar algum nunca mais.
Ele me observou sem piscar por uma batida inteira. Mudei meu peso de uma perna para a outra desconfortável.
Por que diabo está olhando para mim? – eu quis gritar.
- Sua vaga foi preenchida.
Minhas sobrancelhas voaram para cima, e minha mente ficou em branco.
- O q-que? – gaguejei incrédula.
Ele suspirou como se eu o entediasse.
- Não gosto de me repetir senhorita. Por acaso tem algum problema de audição do qual eu não fui notificado?
Mordi a língua barrando o dilúvio de ofensas que eu e minha mente estávamos formulando.
Olhei para a janela panorâmica e sorri pensando em quão agradável seria poder empurra-lo prédio abaixo.
- Eu comecei ontem no emprego – murmurei gesticulando com as mãos no ar. – Sei que a minha primeira impressão não foi das melhores, mas eu posso assegurar que serei uma boa secretária.
Um segundo se passou e então mais outro até que ele riu de forma fria. Como se eu tivesse contado alguma piada.
Tenho certeza que Meredith me esconderia em sua casa se eu cometesse um assassinato.
- Senhor? – Chamei cerrando os dentes. Eu sempre achei que tivesse paciência, mas o homem estava simplesmente me testando.
Antes que ele pudesse responder alguém bateu na porta. Virei meu corpo em direção à batida.
- Entre.
A porta se abriu e uma mulher vestido uma saia lápis preta, e blusa de seda entrou. Seus olhos encontraram os meus e então o da figura usando terno e gravata em frente a mim.
- Com licença senhor. Sinto muito incomoda-lo.
Com um balançar de cabeça dispensou as cortesias. Examinei minhas unhas sentindo-me uma intrusa.
- Qual o problema?
A mulher colocou uma mexa de cabelo marrom e liso atrás da orelha, e limpou a garganta.
- O tradutor teve um inconveniente.
- Que inconveniente? – bastardo exigiu irritado.
- Ele está preso no aeroporto senhor. Eu posso adiar a reunião se...
- Adiar? –falou ele asperamente. - É algum tipo de brincadeira, Leila?
Leila trocou um olhar nervoso comigo, e suspirou.
- Não senhor, eu só queria arranjar uma solução.
- Não há outro tradutor disponível?
Leila se encolheu como se quisesse apenas dar o fora da sala ao invés de responder.
- Todos ocupados.
A empresa tinha seus próprios tradutores? Não sei por que isso me surpreendeu.
- Sinto muito senhor, ele não...
- Não sinta – interrompeu rudemente – apenas arrume uma solução. Esta reunião estava marcada há um mês, era sua responsabilidade fazer com que tudo desse certo.
De todas as coisas o fato de Leila ter dito que sentia muito foi o que mais o irritou. Não havia tempo para desculpas para ele.
Dei alguns passos para trás ate encontrar a parede e tornei a examinar minhas unhas, estavam roídas e um pouco acabadas. Eu tinha organizado a agenda de Gregory ontem, então eu sabia de reunião ele estava falando. Uma reunião com uma possível cliente espanhola dona de uma marca espanhola.
Espanhol, pensei com um estalo na minha mente.
- Eu posso ser a tradutora.
Leila olhou para mim como se eu pudesse ser o santo Graal, já nosso chefe me olhou com surpresa como se tivesse esquecido que eu estava na sala.
  - Você é tradutora? – Leila indagou empurrando o cabelo novamente o cabelo para fora do rosto.
- Não. – Foi quando a realidade do que eu tinha acabado de fazer me atingiu. O que em nome de Deus eu estava pensando?
Eu tinha aprendido o básico nas aulas de escola, mas apenas o básico. Menos que isso, na verdade. Eu mal tinha certeza se podia traduzir um rotulo no supermercado.
Lembrei-me do que uma antiga professora me disse uma vez. Se eu prestasse a atenção veria que português e espanhol são um pouco semelhantes.
- Mas eu falo espanhol. Um pouco – acrescentei para suavizar a mentira. Gregory ergueu a sobrancelha como se duvidoso. Ele parecia um rei em seu trono sentado na cadeira da presidência.
- É o suficiente para ajudar – afirmei. Eu esperava que sim.
Leila sorriu para mim, parecendo aliviada. Desviei os olhos do seu rosto esperançoso. – Eu tenho uma condição, entretanto.
- Que condição? – disseram em uníssono. O queixo de Leila caiu, assim como seu sorriso, Mabuchi não pareceu surpreso, na verdade o brilho afiado em seus olhos me disse que ele sabia quais eram minhas próximas palavras.
- Meu emprego. – Cruzei os braços esperando. Por fora eu parecia confiante, por dentro eu estava apavorada.
Sustentei o olhar do bastardo arrogante, sem desviar mesmo que eu quisesse. Era como aquela frase: Ou você atira, ou você é baleado.
- Eu não irei prometer nada, até depois da reunião.
Era um começo. Eu não queria ceder, mas era tudo que eu tinha. Uma garantia vazia, ainda sim é uma garantia.
- Tudo bem – encolhi os ombros. – Só me de um segundo – falei de repente lembrando a minha aparência. – Eu preciso ir até o banheiro. – Eu só precisava saber onde ficava o banheiro.
Leila olhou para o relógio em seu pulso. - Temos cinco minutos até a reunião começar.
Eu precisava de pelo menos uma hora para ficar decente, mas não estava em condições de ser exigente.
Mabuchi olhou para mim ainda sentado em sua cadeira como um rei.
- É tudo que tem.
Assenti, e caminhei até a porta.
- Pode usar o meu banheiro particular, senhorita. – Virei e olhei para onde ele apontava. Uma porta que até então eu sequer tinha notado.
Mordi o lábio e fui até ela.
- Hum... Obrigada.
Dentro do banheiro olhei para o meu reflexo no espelho. Graças a deus eu tinha tido tempo de lavar o rosto.
Peguei meu celular da bolsa e desbloqueei a tela do celular.
Eu tinha quatro ligações perdidas. Três de Meredith, e uma dos meus pais.
Arrastei meus olhos ao redor banheiro, e absorvi os detalhes. Tinha tanto bom gosto, que eu estava com um pouco de inveja do design encarregado.
Larguei a bolsa em cima da pia, e disquei o numero de Mer. Dois toques depois, ela atendeu.
- Alô? – Meredith gemeu sonolenta.
- São nove da manhã hora de acordar.
- Eu cheguei em casa lá pelas cinco, o que significa que dormi por apenas quatro horas. – Meredith trabalhava em um bar durante a noite para se sustentar. Embora às vezes houvesse boas gorjetas, também havia o mau humor por não dormir. – Me de um bom motivo, para estar me acordando Jas!
- Estou retornando suas ligações. – Além das mensagens de texto rápidas não tínhamos nos falado, então ela não sabia de nada do que tinha acontecido ontem. – E eu fui demitida.
- Sou toda ouvidos. O que aconteceu? Você está bem?
Contei o mais resumidamente tudo que eu pude, lembrando que o meu tempo para conversar era curto só cinco minutos. – E foi isso que aconteceu – conclui.
- Se você quiser mata-lo – ela disse com um riso, o que me fez sorrir também. – Eu posso esconder um corpo, andei vendo algumas séries criminais e sei como não deixar pistas. – Ao fundo eu ouvi algo abrindo e fechando, e após o barulho da torneira. Ela estava fazendo café. Eu adoraria tomar uma xícara extragrande. – Mas eu só não entendo uma coisa. Você não fala espanhol Jas...
- Eu sei – gemi. – Mas eu não posso ir até lá e dizer isso.
- Então como...?
- Eu não tenho ideia – interrompi adivinhando sua pergunta.
- É como você disse espanhol é parecido com sua língua nativa. Não é isso?
- Mais ou menos.
- Deixe-me pensar – Mer. pediu. Afastei o telefone do ouvido e olhei para o relógio digital. Meus cinco minutos já tinham passado. – Eu não sei o que dizer. Mas eu sei que vai dar tudo certo.
Eu sorri com sua fé em mim.
Esperemos!
- Pelo que eu entendi você está uma bagunça.
Fiz uma careta para o meu reflexo. – Isso estaria correto.
- Nisso eu posso ajudar. Desfaça a sua trança, e faça um coque. Você fica sexy de coque.
Rolei meus olhos. – Eu quero recuperar meu emprego, não ficar sexy.
Meredith suspirou dramaticamente do outro lado da linha.
- Ah pelo amor de Deus me obedeça! E passe batom. Antes que diga que não tem eu sei que você tem na bolsa. – Afastei o telefone do ouvido e mostrei a língua para ele, antes de apoia-lo em cima da minha bolsa.
Coloquei a ligação no viva voz e desfiz a trança, moldando meu cabelo em um coque frouxo.
- Desfiz.
- Agora o batom!
- Eu não tenho tempo.
- Então não gaste o tempo que não tem discutindo comigo. Faça o que eu estou dizendo. O batom!
Suspirei e comecei a passar o batom nos lábios. Eu estava guardando-o de volta na bolsa quando percebi a cor. Vermelho.
- Certo Mer eu...
Alguém bateu a porta.
- Só um segundo.
- Ok.
- Não foi com você. - Olhei para a porta percebendo que eu não tinha trancado-a. - Já estou saindo.
Mais uma batida. – Eu só preciso de mais um segundo – gritei, e depois baixei a voz para falar com a minha melhor amiga. - Meredith alguém está... – Outra batida. – Céus - grunhi arrebentando o fio de paciência que me restava – será que eu...
A porta abriu-se e Gregory Mabuchi entrou.
- Jas? – Mer chamou.
- Temos que ir – bastardo arrogante murmurou. Ele não parecia feliz.
Peguei meu celular e bolsa.
- Tá bem – sorri apertado lutando contra o impulso de fechar a porta e me trancar. – Estou pronta - afirmei e lembrando que Meredith ainda estava na linha murmurei: - Ligo mais tarde. Amo você.
Gregory deu um passo para trás encostando-se a porta e apontou para a porta. – Temos que ir - repetiu e seu tom denunciou sua irritação.
Enfiei o celular na bolsa e assenti dando alguns passos para fora do banheiro. Senti sua mão no meu cotovelo me parando. Virei para trás.
- Tem certeza que consegue ser a tradutora? – indagou. Seus olhos franziram como se tentando decidir se eu era ou não capaz. Olhei para sua mão em meu braço, e ergui o queixo como eu costumava fazer para enfrentar os valentões no colegial.
Certeza alguma, bastardo arrogante!
- Certeza absoluta, senhor!

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