36. Não fale com os mortos

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Eu lembrava com amargura aquela noite em que havia descoberto que meu pai estava de segredos com minha melhor amiga. Claro que era apenas uma criança de 12 anos, mas ainda assim, percebi o quanto não havia dado importância para nenhum dos fatos que aconteceram na época.

Todas as manchetes de jornais anunciando os suicídios na região. Bem na época em que ele vinha me visitar. Nunca havia notado aquilo, deveria confessar, mas o fato de ter me dado conta, fez com que uma muralha de vidro se estilhaçasse bem diante de meus olhos.

Não havia sido apenas aquilo. E sobre aquele dia que amanhecera e eu me esquecera das coisas que haviam acontecido? Tudo parecia se repetir outra vez, mas com a diferença de que eu sempre acabava lembrando o que acontecia.

Mas, se aquele homem era mesmo meu pai, como eu não o havia reconhecido? Fazia muito tempo desde que recebera a última visita dele - no velório de meu falecido namorado, onde ele fizera questão de cuidar de todos os detalhes fúnebres.

Aquilo não se encaixava em minha mente. Era como se eu estivesse diante de um amontoado de peças soltas de um quebra-cabeça que não queria ser montado. Haviam tantas perguntas que não traziam uma resposta de imediato, e tremulei ao pensar que tudo aquilo esteve diante de meus olhos aquele tempo todo, mas eu não havia sido capaz de enxergar.

Claro! Que filha pensaria absurdos do próprio pai? Mesmo não sendo o melhor na categoria, ele se fazia presente sempre que conseguia um tempo longe do serviço. No que é que ele trabalhava mesmo?

Fiquei em choque ao me dar conta de que não fazia a mínima ideia. E o pior não era apenas aquilo: eu nunca dei a mínima para o que meu pai fazia, contanto que ele mandasse dinheiro todo mês, era o que importava.

Hoje eu via com clareza tudo o que era revelado diante de meus olhos, pávida. Todo o meu passado parecia uma mera lembrança distante de um livro que eu havia lido. Não parecia mais fazer parte de mim.

- Meu próprio pai?! - recordava com temor a época em que ainda era tão jovem para deixar que o mal corrompesse meu coração.

A avenida estava tumultuada. Dei uma olhada em direção aos pedestres que se aglomeravam. Jornalistas locais já chegavam para reportarem o acontecimento que passaria no próximo jornal.

Suicídio de 6 jovens em limite da cidade Vitória dos Campos. O terrível acontecimento chamou a atenção de seus moradores, e causou indignação. Uma onda de suicídios vêm acontecendo na Região Metropolitana de Solitude. De acordo com a Secretaria da Saúde, dois casos de suicídio ocorreram na própria Solitude, nos últimos dias, e em três outras cidades: Portonhela, Alto Barroco e Verde Folha.

Eu ouvia o que o jornalista dizia, prestando atenção em cada palavra que era dita. Principalmente, nas seguintes:

Segundo informações que acabamos de receber de nossa central, três outros suicídios coletivos acabam de ocorrer em três cidades da região: Laguna Prado, General Rodrigues e Formosa Serreira. A polícia local já trabalha no caso, tendo solicitado mais quatro delegados da cidade de Solitude, para trabalharem diretamente no caso. Foi solicitada a presença do delegado principal de Solitude, Almir Ferreira, mas sua localização está desconhecida.

Os investigadores dos casos suicidas já estão afirmando que se trata de uma seita. Agora, só nos resta ficar no aguardo para maiores informações dos casos.

Pierre me mirava, preocupado com o que havíamos acabado de escutar. Eu já não estava tão perturbada, quanto minutos antes. Escutar o que aquele repórter dizia, me fizera lembrar que independente de Lara estar em minha mente, ou não, aquele era o momento de me concentrar no que realmente importava: pegar aquele infeliz que estava fazendo os suicídios coletivos acontecerem. E, muito provavelmente, eu já fazia ideia de quem se tratava.

Meu próprio pai. Escondido atrás de minhas fuças esse tempo todo.

- Está melhor, Bel? - ouço Pierre me chamando. Olho para trás na procura de Lara, mas ela já não estava mais ali. Quem sabe, se ao entrarmos no carro, eu não seria capaz de sentir sua presença outra vez.

- Estou. - respondo, ainda olhando ao redor, o que deixa Pierre estupefato.

- Você está vendo ela, não está? - ele pergunta temeroso, olhando na mesma direção em que eu procurava.

- Não mais. - retorqui, já me dando por vencida. Não encontraria Lara novamente, mas sua presença ainda me permeava. Ela estava ali, por perto. Eu era capaz de sentir aquilo, embora não soubesse com exatidão onde ela estaria agora.

Era como se ela pudesse controlar quando apareceria para mim, ou não. E, pelo visto, ela só resolvia dar as caras quando tinha algo polêmico a me revelar.

- O que ela te disse? - Pierre tomou minha atenção totalmente para si. Havia me esquecido que ele só foi capaz de escutar metade da conversa, já que o restante, havia sido dito pela Lara.

- O meu pai. - iniciei, engolindo em seco, como se pudesse fazer aquelas palavras que surgiriam em seguida, sumirem. - ele é o responsável por tudo o que está acontecendo.

- Você quer dizer que seu pai é o ceifeiro? Aquele que está induzindo o suicídio? - Pierre me mirava. Seu raciocínio estava bem mais avançado. Deveria ser pelo fato de ter se acostumado nos últimos dias, ao que parecia irreal.

- Sim! - exclamei em resposta. - Ele é o responsável por tudo isso. É o homem misterioso que vimos. Eu não fui capaz de reconhecer meu próprio pai. - dei um bufo de insatisfação, seguido por um riso. - Acredita nisso? Durante todos esses anos, meu pai teve uma profissão que eu nem fazia ideia do que se tratava. Esteve bem diante de meus olhos, mas eu não quis ver. E sabe por que? Eu sou egoísta.

- Mas, quem é que não é? - Pierre começou a argumentar, e eu me perguntei se aquilo seria uma tentativa de consolo. - Nesse mundo tão tumultuado, quem é que não tem um pouco de egoísmo dentro de si? Alguns bem mais, outros bem menos, mas de qualquer modo, independente de onde e quando, somos todos egoístas.

- Eu sei, você tem razão. - soltei os ombros, ainda tensa. A revelação de toda a verdade - ou parte dela, ainda - me fazia entrar em um estado de tensão absurda.

Dei outra olhada para a rua, que, embora ainda estivesse tumultuada, já não estava como antes. A reportagem havia ido embora, pessoas aterrorizadas se encontravam no meio da rua. Pessoas chorosas apareciam, e aquele sim, eu sabia que tinham um bom motivo para participarem do escândalo. Deveriam ser parentes das vítimas.

Quantas pessoas mais teriam que morrer? Eu não sabia o que sentir, e muito menos, o que deveria esperar.

- Para onde quer que eu te leve? - ele perguntou, abrindo novamente a porta do carro.

- Para qualquer lugar. Só me tire daqui, tudo bem?

Ele fez um breve assentimento. Entramos no carro. Como eu havia previsto, os olhos delicados de Lara nos encaravam pelo retrovisor. Quando nossos olhares se cruzaram, eu vi a sombra de nossas lembranças esparsas em sua retina.

Resolvemos parar em mais um local. Dessa vez, apenas para tomarmos nosso digno café da manhã, que, sinceramente, eu nem me lembrava se havia tomado aquele dia.

Minha memória estava falha com o acumulado de informações que adentravam ela.

Descemos do carro. Desta vez, eu sinto alguém me cutucar o ombro.

Olho para a sua direção, sentindo o vento bater diretamente na pele de meu braço, eriçando todos os pelos. Ele aparecia diante de meus olhos, e apenas senti a lágrima quente descendo de minha retina e banhando meu rosto, com sua completa melancolia e amor que havia ficado guardado por tanto tempo, apenas na esperança de que ele pudesse voltar um dia para meus braços, e pudéssemos nos amar outra vez.

- Guilherme!

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