Meu coração deu um sobressalto em meu peito, uma agonia paralisante. Acordei, banhada em meu suor, que me percorria a testa e escorria pelas maçãs de meu rosto. Que pesadelo! Aquilo foi mesmo um pesadelo?
Vesti uma saia cor de pele, agarrada aos meus quadris e até o joelho. Uma camisa social azul marinho, com os dois últimos botões abertos. Provavelmente, chegaria atrasada na reunião, mas quero mais que eles se explodam.
Minha pele morena dispensava muitas formalidades de pó pela manhã. Não havia muito que esconder, sendo que olheiras quase não possuía. Minhas madeixas escorriam por meus ombros, em leves ondulações que se formavam em cachos deformados, prendendo os fios rebeldes ao topo da cabeça, em um coque improvisado e elegante.
Moro sozinha no apartamento 23 numa cidade no fim do mundo, com uma bela vista pra nada. Desci o elevador, e encontrei as vizinhas fofoqueiras fazendo o que sabiam de melhor:
- Você viu a filha do César? Só dá desgosto pra família! – a velha de lenço na cabeça e sacola da feira em um dos braços, exclamou para a outra, que pelo visto, tinha acabado de voltar da feira também.
- Ainda bem que eu tenho mais o que fazer, do que ficar tomando conta da vida alheia! – sussurrei ao passar por elas, e ganhei um olhar de esguelha demonstrando a infelicidade das senhoras em me ouvirem dizendo aquilo.
Fui para o carro, jogando minha bolsa no banco do lado. Meu celular vibrou ao receber uma SMS. Se for aquele idiota do RH me avisando sobre a reunião, novamente, eu vou dar na cara dela!
Meu humor não estava dos melhores. Acendi o visor, e era uma mensagem de Lara.
Precisamos falar sobre ontem. Muito sinistro! Ñ peguei no sono
Encarei a tela do celular uma vez mais, antes de jogá-lo novamente dentro da bolsa. Minhas mãos trêmulas seguraram o duro volante do carro. Pisei no acelerador.
Meus olhos encaravam a Avenida tumultuada às 7h30 da manhã, mas em minha mente, era outra visão que me transbordava. Em um lapso de memória, via a garota de cabelos pretos se jogando do alto do prédio na rua em que Lara morava.
Vi a sombra permeando o apartamento, a qual deveria ser proveniente de algum homem austero que a forçou a fazer aquilo. Vi a mim mesma em um jornal que nem havia sido publicado ainda.
Como aquilo era possível? Questionei, em voz alta.
Virei o volante bruscamente na curva. Subi a rua, e virei a segunda à direita. Um enorme prédio de 17 andares ocupava um quarteirão todo.
Encarei o relógio do rádio do carro. Ainda faltavam 10 minutos até que a reunião começasse.
A fachada do prédio apresentava espelhamento nos vidros das janelas. Dois coqueiros ornamentais avistavam-se à frente de uma pequena escadaria em pedras, que dava para o saguão.
Entrei no elevador, apertando o botão circular que indicava o número do meu andar. 8.
Desci, carregando minha bolsa no antebraço, e fui para a sala de reunião. Adentrei a sala restrita de decoração arquitetônica moderna e arrojada.
- Bom dia! – exclamei para as três pessoas que estavam sentadas em suas cadeiras. Estavam todos com feições de pesar. – Aconteceu alguma coisa? – coloquei minha bolsa na mesa, e acomodei-me à cadeira.
- Você não soube? – Felício Batista foi o primeiro a se manifestar. Era um jovem metido à besta que a empresa contratou há poucos meses. Gel exageradamente em seu cabelo loiro, olhos expressivos e olhar superior. Riso debochado. Gostava de mandar mensagens avisando sobre reuniões, só para se demonstrar proativo até mesmo longe do ambiente de trabalho.
- Se soubesse, não teria perguntado se aconteceu alguma coisa! – entortei a cabeça para o lado dando um sorriso sem mostrar os dentes. Daqueles que denotam sarcasmo.
- A filha da chefe se suicidou. – Adália tomou a frente, com pesar em sua face.
Ai, caramba! Pensei, revirando os olhos ao recordar o prédio que eu e Lara presenciamos a cena no dia anterior. Não era Lara quem morava lá! Como pude me enganar daquele jeito?
Fabiane é quem tinha um apartamento bem na frente da praça. A filha de Zilda, minha chefe.
- Caramba! – consegui exclamar, engolindo em seco. – O que nós estamos fazendo aqui? Temos que prestar nossas condolências para Zilda. Ôh! Isso sim é um pesadelo! – eles encararam minha reação como se eu tivesse ficado louca.
- Temos que manter a calma. – Fabrício anunciou com sua voz enevoada, e um sorriso lhe brotou nos lábios, como que para me provocar. – Especialmente você, Belina.
- Não entendi a alfinetada, paspalho. – retornei, com a paciência fatigada.
- Claro! – ele deu um sorriso de canto, virando-se para pegar um envelope timbrado que estava posto à mesa de reunião. – Chegou para você, hoje!
Estendi o braço para pegar o envelope que continha emblema da Polícia Municipal de Solitude. Rasguei o envelope, sem fazer cerimônia, conferindo o papel timbrado que dentro dele estava.
INTIMADO(A): BELINA VALENTINA COLOMBARI DUARTE
ENDEREÇO: RUA DAS AMEIXAS, Nº 4521 – JARDIM CITRINO – SOLITUDE.
DATA: 02/07/2015.
LOCAL PARA APRESENTAÇÃO: DELEGACIA DE SOLITUDE
DELEGADO ALMIR FERREIRA DE SOUZA
CONTRAFÉ
IP 12/56
INTIMADO EM_______/________/2015/ Ciente: _____________________________________________________________
CONVOCA-SE O (A) SR. (A) MENCIONADO NOS ADENDOS ACIMA, POSSUINDO A FINALIDADE DE SER
( ) SUSPEITO(A); ( ) VÍTIMA; (X) TESTEMUNHA; DE CRIME REGISTRADO SOB O CÓDIGO Nº 13.758/45.
FAZ-SE NECESSÁRIA A PRESENÇA DO INTIMADO, PARA PRESTAR ESCLARECIMENTOS RELACIONADOS AO BOLETIM DE OCORRÊNCIA MENCIONADO.
INVESTIGADOR POLICIAL CARLOS AUGUSTO ALVARENGA
- Mas que porr...! – as linhas finas de minha testa aumentaram sua expressão, ao finalizar a leitura da página. Eu havia sido intimada a comparecer perante o Delegado da cidade, para prestar depoimento sobre um suicídio.
- Você foi testemunha? – Petúnia, a mais velha do departamento, exclamou ao avistar o 'x' assinalado no item que continha a palavra 'testemunha', à frente.
Não que isso seja da sua conta, pensei, ponderando se deveria alfinetá-la, mas optei por permanecer quieta. Não iria criar ainda mais alvoroço com meu senso de humor que havia descido pela janela, assim como a menina suicida.
- É, eu estava perto do lugar quando ocorreu. – pestanejei ao responder, em uma fala mansa e contida. – Só não fazia ideia de quem era a moça que se suicidara.
- Agora você descobriu! – Fabrício instigou, e eu o encarei. Não sabia qual a necessidade da existência de uma pessoa tão petulante quanto ele, mas imaginei que Deus estava testando minha paciência.
E haja paciência!
- Pois bem! – dei de ombros, já pendurando a alça da bolsa no braço. – Já que ninguém aqui vai trabalhar hoje mesmo, vou buscar o que fazer.
E finalizando, desci pelo elevador,dobrando a carta de intimação em minha bolsa.
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Não foi suicídio!
Misteri / ThrillerBelina vê sua vida virar do avesso ao presenciar um suicídio. Frio, rápido e sem explicação. Uma jovem se joga do topo de um prédio, tendo seu corpo perfurado pelos cacos de vidro da calçada. Ninguém entende como uma jovem no auge de sua vida era c...