50. Minha alma serena

1.9K 205 30
                                    

Eu não quis acreditar que tudo aquilo era real, quando senti o gosto amargo de meu sangue escorrer por meus braços. O líquido vermelho e grosso formava uma linha curvilínea ao descer sob meu ventre, indo de encontro com minhas coxas.

Meu corpo dormente e entorpecido já não sentia quase nada. Nenhuma dor era forte o suficiente para me fazer gemer, e nenhum ímpeto de loucura era capaz de me fazer delirar.

Não era. Não mais.

Lara havia ido embora. Ela já não estava mais ali quando cruzei a linha da eternidade que poderia manter nossa amizade viva. Eu não compreendia para onde ela poderia ter ido, apenas encarei o homem à minha frente.

Meu próprio pai. Olhando-me como se eu fosse um animal coberto de sangue após uma caçada. O feto que arranquei de meu corpo estava estirado ao chão, assim como o meu eu corpóreo agora estava.

Havia perdido o tato. Já não sentia mais a finura de minhas roupas descendo em meu corpo, nem a espessura do sangue grosso em minhas veias. Não sentia o cheiro íngreme do sangue me impregnar as narinas.

O mundo deturpava-se sua cor, tornando o céu cinzento, o prédio opaco, e o tempo nude.

- Não deveria ter feito isso! - Meu pai olhava para mim, e pela primeira vez em anos, pude vê-lo como realmente era. Por que seus mistérios só me foram revelados nestes últimos tempos?

Eu havia perdido uma iniquidade de vida preocupada com meu egoísmo exacerbado, e nem me dera conta que existiam pessoas ao meu redor, que tinham sentimentos como eu.

Agora, nada daquilo importava mais. Sentia tudo aquilo que me dominou, sumindo de minhas veias, e incandescendo por um vazio incólume de outra imensidão. Minha alma agora era serena, o que outrora fora maculada pelo pecado.

Eu consegui limpar a mim mesma de todos os pecados que estive imersa minha vida inteira, embora tivesse perdido uma vida para a eternidade. Ainda refletia em tudo o que deixei para trás, e pensei no quanto minha alma estivera consumida ao longo daqueles anos, e nem me dera conta.

Eram tantos lamentos que deveriam ficar para trás, que só existiam duas saídas cabíveis: ou eu daria um fim à minha própria vida, pois era fraca o suficiente para enfrentar tudo de uma vez (Olha só, foi exatamente o que fiz).

Ou tentaria fazer dos meus erros uma muralha, de meus pecados, a minha redenção. E encontraria uma saída que não seria a mais fácil para mim, mas a melhor para minha alma.

- O que pretende fazer agora?

- Descansar em paz por toda a eternidade? - murmurei, enfatizando meu senso de humor mórbido. Não estava no clima para mais nada.

Estava morta.

Me sentia morta.

O mundo me ceifava com sua imensa foice, e o véu inebriante entre a vida e a morte já se extinguia.

O grande ceifeiro desapareceu de minhas vistas, desolado.

Seu plano não havia dado certo mesmo, por que ele permaneceria ali? Havia sumido com sua grande adaga dourada, mas aquilo já não tinha tanta importância assim.

Tudo o que ele havia planejado, agora estava tardado.

Ele poderia correr para avisar aos seus comparsas que o bebê herdeiro já não mais existia, assim como a filha também não.

Aquilo não os impediria de continuarem com seus planos, mas era fundamental para tardar, por um momento. Eu era a peça fundamental para completar aquele quebra-cabeça.

Tudo estava nítido agora, e eu via como um clarão o que deveria ser feito.

Olhei para minhas mãos pálidas, em uma cor gélida incorpórea, lembrando-me dos jornais. Eles sempre existiram para aquela finalidade: deixarem marcado o que acontecia.

Apenas assim, e sem nenhum outro jeito, todas as tragédias se tornariam mais reais. Pela marca que a passagem entre o que aconteceu, e o que viria a acontecer, exercia no espaço-tempo.

E aquilo, era exatamente o que eu precisava para mim.

Possuir algum corpo que me permitisse contar a minha história.

O mundo precisava saber as coisas que vi, e mais ainda, aquelas que vivi.

Em pouco tempo, a Região Metropolitana de Solitude se tornaria esquecida. As cidades nela pertencentes, se dispersariam entre as Regiões de São Paulo e Campinas.

Com outros nomes. Outras histórias. Um mesmo passado oculto de toda a população. A região de Solitude não seria achada em mapas ou livro de geografia, pois os ceifeiros precisariam dar um novo andamento ao plano, antes de executarem tudo outra vez.

Logo eles conseguiriam outras formas de levarem as almas suicidas. O bebê não existia mais. Aquele bebê cujo sangue seria capaz de trazer poderes inimagináveis ao seu mestre.

Nada daquilo existia. Mas eu precisava encontrar uma maneira de avisar que o mal estava impregnado no meio das pessoas, e elas nem se davam conta.

Precisava. Como uma última prece que eu faria, antes de minha alma vaguear sem rumo pela eternidade.

Não foi suicídio! Onde histórias criam vida. Descubra agora