40. Ele conta a história

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Vitória dos Campos

Aguardávamos a resposta que Guilherme daria. A empolgação inicial em vê-lo diante de meus olhos já havia passado, e embora eu me enternecesse de sentimentos bons aos nota-lo tão próximo de mim, não pude deixar minha racionalidade ficar em segundo plano.

Sua presença era magnífica, mas havia algo de errado em tudo aquilo, e eu temia por descobrir.

Mas era melhor que toda a verdade viesse à tona de uma só vez, do que permanecer na obscuridade de minhas fantasias.

- É uma longa história! – ele respondeu, como se apenas aquela resposta estivesse na ponta de sua língua. – Você não vai querer saber agora como foi que sobrevivi. – ele tentava me persuadir, mas ao cruzar meu olhar com o de Pierre, vi o que deveria ser feito.

Deveria me manter forte e determinada em descobrir a verdade, mesmo que tudo o que restava de meus sentimentos, fosse junto.

- Não existe outra coisa que eu queira neste momento! – rebati, pronta para que ele começasse o relato. Ele olhou de mim para Pierre, e de Pierre para a cadeira vazia onde Lara estava. Onde ela aparecia apenas para mim.

Se ele estiver conseguindo ver ela, já terei minha resposta.

Mas seus olhos não aparentaram estar perturbados. Ele apenas deu início ao tão esperado relato, dizendo o que aguardávamos escutar.

- Tudo bem! – iniciou, se dando por vencido. – Mas quero deixar bem claro que não foi culpa minha ter sumido assim, durante todo este tempo. – e fazendo uma pausa para respirar, deu continuidade. – Assim que seu pai descobriu que eu não posso ter filhos, ele começou a me fazer ameaças. Insistiu de todo modo para que eu terminasse nosso noivado, que aquilo era burrice. Ele disse que eu não era o cara certo para você, e que não era justo que a única filha que ele teve a capacidade de ter, não pudesse lhe dar um neto.

Bufei em sua direção, indignada. Deveria ter desconfiado que havia um dedinho de Ângelo Colombari naquilo tudo.

Ou seria melhor me referir à ele como Angelus Mortis? Já nem sabia qual o título mais adequado.

- Ele me persuadiu de um modo terrível. Você não faz ideia, Bel. Era como se ele estivesse me torturando profundamente. Dentro da minha cabeça mesmo. Me fez acreditar que eu não era o homem certo para você, que eu não possuía honra, pois nunca conseguiria lhe dar um filho. – fez uma pausa para soltar um riso contido. – Ele estava conseguindo me deixar a cada dia mais insano. E seus motivos foram entrando intensamente dentro de mim. Até que não vi outra saída, a não ser, a morte. – deu uma leve bufada, ponderando as palavras que deveriam vir na sequência. – Ele me queria morto, e foi exatamente o que resolvi dar a ele. Mas, não literalmente. Forjamos minha morte. O acidente e tudo mais. Ele ficou encarregado por toda a parte funerária, pois não queria que você soubesse que eu continuava vivo. Ele só queria que nos afastássemos.

Olhei para ele, surpresa pelo que havia acabado de escutar. Meu pai já havia passado dos limites quando a Lara me contou que ele era o homem responsável por todo o caos que minha vida se tornou nessa semana.

Mas eu não fazia ideia de que ele fizera aquilo com Guilherme também. Quantas vidas mais ele teria que manipular, até atingir seu principal alvo? Até chegar à mim? Eu não compreendia, e nem queria entender.

Aquilo tudo acabara se tornando demais para mim, e eu só precisava sumir por uns dias. Não aguentava mais aquela sensação de sufocamento que estive imersa nos últimos tempos.

- Ele só está mentindo em um detalhe, Bel. – a voz de Lara começava a pirraçar mais uma vez, perfurando minha mente como um grosso parafuso sendo introduzido em meu crânio. – Ele morreu. Assim como eu. Ele está mortinho, Bel. Como você não consegue ver isso? – sua voz era uma agulha em minha mente. Quanto mais ela falava, mais dor causava.

- Estou confusa. – abaixei a cabeça, e elevando uma mão à cabeça, comecei a massagear a região em que doía tremendamente. – Se você está vivo durante todo este tempo, onde esteve? – pergunto, olhando para ele, embora escute a voz de Lara sussurrar atrás de mim.

- Não acredite em nada do que ele diz!

Mas Guilherme já começava a falar, em seguida.

- Fora da região. Com uns parentes em outro estado! – ele nem hesitou a responder, o que me levava a acreditar que aquela só poderia ser a verdade. A não ser, é claro, que ele tivesse ensaiado uma mentira, muito antes. Ele teve muito tempo para isso, afinal.

- E você ainda acredita nisso? – Lara voltava a falar, rindo descontroladamente sobre o que Guilherme afirmava com convicção.

Pierre apenas nos olhava, mudo. Ele notava pelas minhas feições, que eu estava passando por uma luta interna naquele exato instante. Uma luta contra a sua namorada suicida, que ainda não havia me abandonado.

Tive a impressão de que Lara só estaria por perto, enquanto a minha culpa ainda existisse. E embora ela tenha sido minha melhor amiga, existem momentos na vida em que não podemos dizer nada mais do que um saudoso 'Adeus'.

- Ei, você está bem? – Guilherme me acudiu, vindo preocupado em minha direção. Eu suava frio, e encarava os três rostos que apareciam em minha frente, cada qual, de maneira distorcida.

Minhas energias estavam fracas, e eu sabia que a presença de Lara influenciava o meu estado. Poderia haver outra explicação, mas ela era meu ponto fraco e sabia disso.

- Foi só um mal estar. – minha cabeça ardia em dor, e eu não fixava mais nenhuma imagem nitidamente. Olhei ao redor, e notei que alguns vultos me encaravam preocupados.

Eles acham que eu sou louca. Sei disso. Estou percebendo no olhar de cada um deles. Ah, mas se eles soubessem que não sou a única! Loucura é uma questão sobre o quanto nossos problemas afetam nossa psique. E qualquer um aqui pode ficar maluco. Assim como eu, e até mais.

Olhei para a porta de entrada, desta vez, sabendo distinguir tão claramente o homem que estivera à espreita, nos observando. Ninguém mais parecia vê-lo ali, o que me deixava a conclusão de que ele aparecia apenas para mim.

Uma roupa preta lhe cobria cada ponto de seu corpo. Um capuz lhe tampava a face. Um cachorro ao seu lado, estava sentado. Já não latia, pois sabia que naquele instante, seu latido seria um grito desnecessário. Um sufoco na multidão, que apenas eu conseguiria ouvir.

E, o intuito daquele homem, naquele lugar, não era o de me deixar ainda mais insana: ele queria ver como é que eu estava me saindo.

- Para onde você está indo? – ouvi a voz de Pierre me chamando atrás de mim, mas nem me dei ao trabalho de responder. Deixei uma quantia de dinheiro na mesa, para pagar o que havíamos consumido. E andei na direção do homem que ainda me observa.

Ele abre a porta, e sai para a rua. Vou atrás dele, e ouço os passos dos meus dois homens atrás de mim: meu noivo e meu amante.

Eles me observam, como se a lucidez tivesse fugido de mim novamente, pois eu paro no meio da calçada, e com muito ódio contido, digo aquelas palavras em alto e bom som:

- Olá... Papai.

Não foi suicídio! Onde histórias criam vida. Descubra agora