Prólogo: sacrifício em holocausto - Parte 3 de 8

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Das cinzas, a vida ressurgirá.

Ninguém saiu da capela aquela noite. Todos os habitantes de Mundinho permaneceram ouvindo a palavra de Moloque e descobrindo os mistérios de Geena. O fato é que cada um, em seu âmago, sabia que bastaria um momento a sós para serem devorados por um de seus esfomeados vizinhos, conhecidos e queridos. Os olhares, quando não destinados a Genésio, eram ora desconfiados, ora penetrantes, do tipo que fariam nos sentir nus e , como se observassem os segredos de sua alma... seus desejos. E, oh!, meus irmãos, não havia uma boa intenção sequer perante a casa de Deus. Não naquela noite. Uma comunidade de canibais em potencial, sedentos, famintos e virando as costas para a própria Santíssima Trindade; isso era o que todos se tornaram ao longo dos dias de carestia. As horas sob a tutela de Genésio e seu deus profano, Moloque, para o qual começaram a orar, apenas terminaram de lapidar o mal no espírito do povo de Mundinho; este povo não sabia, mas já estava condenado.

Sob o bruxulear das tochas que iluminavam a casa santa, as mulheres da vila apoiavam Madalena, agora deitada, com as pernas abertas, urrando de dor, enquanto seu sexo se dilatava. Seguravam suas mãos, acariciavam seus cabelos castanhos secos e quebradiços. Cobertas por uma fome e uma fé insana e febril, acreditavam que Madalena daria a luz à própria encarnação de Jesus Cristo, à Salvação em carne e osso. O princípio de uma nova era. Uma era de prosperidade e mesas fartas. Um novo Deus e Seu filho. Amém.

Antônio estava com os outros homens junto a Genésio e apenas olhava, contido, para sua mulher. A palavra sacrifício era muito pronunciada, mas Antônio, com a atenção voltada para o parto, não percebera que falavam sobre seu futuro filho – Genésio convencera-os de que era um menino que nasceria. Um sacrifício em holocausto, dissera. Queimaremos até as cinzas. Apenas das cinzas poderemos ressurgir, alegava, acreditando em cada palavra que dizia e repassando as histórias que os avós lhe contavam como se fossem a única verdade existente, o Mistério em si. Geena, a terra prometida aguardará aqueles que me seguirem, disse e olhou para Madalena, aqueles que nos seguirem. Genésio retirou uma tocha da parede da capela e foi para fora, seguido pela maioria, que clamava amém.

Alienados à avançada esquizofrenia que Genésio sofria, e cegos pelo medo do amanhã, os homens assentiram às palavras. Antônio só percebeu o que estava acontecendo depois do quinto aperto que recebeu no ombro. Mas o que poderia ele fazer? Desafiar todo o seu vilarejo? Desafiar um deus? Antônio era apenas um homem.

Ele olhou uma última vez para Madalena, que retribuiu o olhar, em silêncio, como se soubesse e aceitasse o destino que os aguardava, e seguiu junto aos outros.

Cadeiras, mesas e toras de madeira, destinadas ao aquecimento dos lares da vila, eram empilhadas frente à capela. Antônio também compunha o exército de servos de Moloque, aumentando a pira como todos os outros. Genésio permanecia ajoelhado perante a obra, arqueando o corpo com os braços esticados em louvor e emitindo preces que nenhum outro conhecia.

Os berros de Madalena tornavam-se roucos. A hora se aproximava.

O amontoado de madeira tomava forma de uma cama, como Genésio pedira. O derradeiro sono para acordarmos na eternidade. Os últimos pedaços de madeira eram postos no monumento e os homens já o circulavam, aguardando o próximo ato. E após o último deles tomar seu posto, deixando um galão de querosene ao lado de Genésio, este se levantou. Ouvia-se um choro de vida nova, provindo de dentro da capela.

A brisa necessária para o último badalar do sino.

Antônio acompanhou Genésio até sua esposa, que segurava o filho nos braços. Seu primogênito, no qual Antônio nunca colocaria as mãos. Ainda gemendo de dor, Madalena entregou

(seu sacrifício, seu sacrifício em holocausto, sua própria alma)

seu filho nos braços de Genésio. Antônio quase o atacou. A noção do sacrilégio do qual estava fazendo parte crescia em si. A clareza encontrava seus olhos, permitindo-lhe ver o que realmente estava acontecendo naquele lugar; ao seu filho, à sua mulher e a todos os moradores de Mundinho. O frenesi ao qual se lançaram. Mas, a despeito desse sentimento, ele se conteve. Era apenas

(um covarde)

um homem, como afirmara para si mesmo inúmeras vezes naquela noite.

O falso padre sacou um canivete de dentro do casaco e cortou o cordão umbilical que pendia da criança, que o encarava, agora sem chorar. Seus olhos negros destacavam-se em meio à branca pele ensanguentada.

– Oh! – Genésio arquejou, beijando-a na testa.

As mulheres, mudas, observaram-no se virar e caminhar rumo à saída.

Os gritos de Madalena voltaram e Antônio correu, abaixando-se ao lado dela.

– Madalena...

– AAAH! – ela gritou, como se a dor do parto ainda persistisse.

As mulheres voltaram-se para ela, com olhares curiosos para Genésio, que se aproximava da pira. Antônio não pôde deixar de notar, alarmado, a quantidade de sangue que reluzia sob sua querida Madalena. Seu rosto nunca esteve tão claro, tão

(morto)

enfraquecido e temeroso.

– Madalena... – ele lacrimejou, vendo o rosto desfigurado da mulher se contorcer de dor.

Lá fora, no frio, pisando no solo coberto de neve, Genésio despejava querosene sobre a madeira. O recém-nascido permanecia calado. Por fim, houve um resquício de hesitação, mas ele despejou querosene sobre si e sobre o menino. Todos arregalaram os olhos, mas nada fizeram. Eram apenas homens, insistiam, homens febris pela carestia e cegos pela fé.

Genésio caminhou até a parede da capela, onde havia depositado sua tocha, e a pegou, voltando para a pira.

– OUÇAM! – gritou. – TODO O SACRIFÍCIO SERÁ RECOMPENSADO. DAS CINZAS, A VIDA E A PROSPERIDADE RESSURGIRÃO. DAS CINZAS, RENASCEREMOS. POIS EU SOU O PASTOR E ESTE É O CORDEIRO. O CORDEIRO QUE IRÁ RETIRAR O PECADO DO MUNDO, DIGAM AMÉM.

– Amém! – todos os homens responderam, menos Antônio, que queria correr até Genésio, entretanto sentia as pernas paralisadas, tomadas pelo medo.

Apenas um homem. Apenas um covarde.

– QUE GEENA NOS RECEBA! – Genésio gritou, encostando a tocha na madeira, colocando-a em chamas, e, depois, contra si mesmo. – AAAAAAAAH! – ele subiu no leito que o levaria à eternidade, queimando. – QUE... AAAAAAAAH... GEENA NOS... AAAAAAAAAAAH! – A criança voltou a chorar em seus braços, sendo tomada pelo fogo e expurgada por Moloque.

– NÃO! – o grito de Antônio veio de dentro da capela. Ele se jogara no chão em desespero, desistindo de lutar contra a imobilidade de seus membros inferiores. – NÃÃÃÃO!!

Algumas mulheres, próximas a ele, viraram o rosto; outras choravam, apertando a mão de Madalena, que não olhou para o lugar uma única vez; no sagrado chão da capela, senhoras e senhoritas, ajoelhadas, vomitavam.

– NÃO! NÃÃO! OH, DEUS, NÃO! – Antônio levava as mãos aos cabelos, arrancando-os.

Osgritos de Genésio e o choro da criança desapareciam, junto com seus corpos,sobre a pira ardente.


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