Capítulo 1: terra di nessuno - Parte 2 de 2

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Essa terra é nossa! – gritou Francisco, segurando sua enxada, à frente do grupo de sertanejos, homens e mulheres simples de descendência portuguesa.

A cena ganhava tensão. De um lado, empunhando suas ferramentas rudimentares, os pequenos agricultores; de outro, um grupo de forasteiros armados com espingardas, alguns montados em cavalos, com rostos destacando os matadores que eram.

Che cosa lui detto? ("O que ele disse?") – o italiano de botas de couro, sobre o cavalo negro, perguntou.

O rapaz ao seu lado, suando de medo, explicou, com seu italiano rudimentar, que o homem dissera que a terra era deles.

O italiano gargalhou com a resposta e todos o acompanharam, como fazem os capangas. O rapaz engoliu seco, sentindo as mãos trêmulas e olhando para os lavradores.

Di te? ("Sua?") – o italiano perguntou de forma irônica, mantendo o sorriso. – Qui è il Brasile, miserabile bastardo! Questa terra non è tuo. No! Questa terra è terra di nessuno! TERRA DI NESSUNO, bastardo! ("Aqui é o Brasil, desgraçado infeliz! Essa terra não é sua. Não! Esse chão é terra de ninguém! TERRA DE NINGUÉM, infeliz!") – ele gritou por fim, sacando a arma e atirando contra os sertanejos, que até tentaram fugir – um e outro até conseguiram escapar correndo para um ponto de mata fechada onde seria difícil cavalgar; talvez Deus saiba o que aconteceu com eles –, mas as balas foram mais rápidas, pegando-os de costas e os jogando no . O sangue dos agricultores impregnava o solo. Por fim, os casebres foram saqueados e queimados, não deixando vestígios, e os corpos foram lançados numa fogueira comum cujo cheiro apodreceu o ar. O que sobrou do evento fora enterrado pelos capangas do italiano e talvez um dia seja encontrado por algum arqueólogo que arrisque cavar um buraco naquela terra.

O tradutor, ao notar a situação em que entrara, aproveitou-se da confusão e saiu com seu cavalo para longe. No fim, sabia, ainda sobrariam balas para ele. À medida que o cavalo galopava, os gritos e o riso tomavam o lugar; as explosões dos tiros ditavam o ritmo da orquestra sangrenta.

Em toda oportunidade que teve, durante os anos que se seguiram de sua vida, o rapaz contara essa história e de como ocorrera a cena da qual participara: "TERRA DI NESSUNO!, e os tiros começavam." "Morreram todos." "Sim, aquela vila. Acho que enterraram os corpos." "Sim, sim; amaldiçoaram a terra." "Mas quantos outros não fizeram assim?" "Sim, nessuno." "Terra di nessuno." "Nessuno? Sim, estive lá."

E a história se espalhou como besouros em outubro e ganhou o oeste mineiro. Em pouco tempo, muitos sabiam o que acontecera e alguns até juraram ter presenciado o acontecimento.

Nessuno...

A curiosidade levou os primeiros moradores. Outros chegaram sem saber da sangrenta história e se instalaram na cidade, Nessuno, que crescia. Com as décadas, a história mudou; corajosos homens italianos livraram a terra de bandidos portugueses. Bravos exploradores! Homem de coragem! Guerreiros! E os poucos que poderiam desmentir essa versão já não estavam mais vivos.

E assim os matadores se tornaram heróis, heróis de Nessuno, nomeando ruas e praças. E os assassinados? Bandidos. Um bando de ninguém esquecido no tempo.

Pelas suas origens, Nessuno tornou-se o que é hoje.

Ou talvez isso seja só uma desculpa para acobertar os desejos de pecado dos homens.

Fosse o que fosse, em 1976, Nessuno era conhecida pela sua boemia e libertinagem que advinha da governança de homens poderosos de caráter duvidoso , que, como todos sabiam, comandavam a cidade. Em um tempo no qual tudo era permitido para alguns e proibido para a maioria, os moradores não poderiam reclamar ou condenar as convenções das quais participavam: o sexo, os jogos, as drogas e as bebidas rolavam soltas, e isso era o que importava. Políticos e policiais, a maioria calças curtas, emaranhavam-se para construir a rede dos prazeres, viabilizando nos bastidores o tráfico de substâncias ilícitas, as casas de prostituição, as brigas de galo e casas de jogos. Como um quartel, o monopólio do crime pertencia a eles, de sorte que qualquer abestalhado que ousasse pensar em criar uma segunda via para tais fins desaparecia como dignidade de bêbado. Havia aqueles que não tinham os cinco dedos na corrupção, mas esses não ousariam falar mais do que o recomendado – e se falassem, não seria mais que um par de vezes; pessoas sumiam em Nessuno com a mesma naturalidade com que formigas aparecem nos cantos das casas.

Em tempo de regime militar, no qual os milicos andavam pelas ruas com armas em mãos e ódio por detrás dos olhos, uma lei era imposta com rigidez: a ORDEM. Ela tinha que ser mantida. O que implica que as vontades – leia-se imposições – dos que comandavam a cidade prevaleciam. Dois pesos, duas medidas. Um olho roxo poderia tanto ser ignorado como se tornar motivo para uma prisão que não duraria mais que uma semana.

(Homem encontrado morto na cela. O delegado de polícia alega suicídio.)

Alguns desaparecimentos nem ao menos eram considerados, mesmo que reportados diversas vezes; outros, no entanto, comoviam a cidade.

E quando crianças começam a sumir... bem, não há quem aceite semelhante situação e não há homem poderoso (e ciente de como isso o afeta) o suficiente para acobertá-la. E ao longo do último ano, em Nessuno, mais de dez crianças foram dadas como desaparecidas...

Nenhuma fora encontrada.


Nota do autor: "calça curta" é um termo usado para homens que se tornaram policiais por indicação política ou favorecimento, sem a realização das provas necessárias.

Um Perverso Tom de VinhoOnde histórias criam vida. Descubra agora