Capítulo 29: faroeste mineiro - Parte 1 de 3

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Há um paradoxo entre a vitória e a derrota quando as luzes do sol pós meio-dia te acordam numa espelunca; sua cara encostada em uma mesa de madeira suja, duas garrafas de conhaque ao lado, o estômago fervendo e o gosto do vômito em sua língua. A derrota. Por outro lado, se acordou, é porque está vivo. Então, essa é a vitória.

Fontes, levando a mão esquerda à cabeça, assustou-se por um instante, quando o vão dos dedos faltantes não tocou seus cabelos. A noite anterior veio como uma avalanche, soterrando-o. Havia partes de seu corpo nos quais a dor era mais forte, latejante, insuportável: a parte de trás da cabeça, alertando a ressaca; o rosto, lembrando-o da surra que levara; o estômago, acusando a quantidade de bebida que havia ingerido; o nariz, sangrando de tanto pó cheirado; e seus dedos... seus dedos que nem ao menos estavam e ainda assim insistiam em doer.

Desejou estar morto. Um homem alcançando a sofrível meia-idade, capacho de um desgraçado poderoso que o tinha na palma da mão; um homem que já não conseguia se manter sóbrio. Fontes limpou as lágrimas e o suor do rosto, praguejou contra todas as divindades que poderiam existir e se levantou, caminhando até o balcão; pulou – praguejando um pouco mais – e se serviu de um caro uísque, um privilégio que se dera naquele momento; uma rara dose de Black Label em sua vida. Depois, caso ainda estivesse vivo, acertaria com Carlão. No momento, porém, sentia-se merecedor de uma boa bebida. Queria apenas que a dor parasse; pelo menos diminuísse... e, por esse motivo, sentia-se um covarde.

No entanto, a maior ressaca é o melhor momento que o mundo encontra para bater à porta e te forçar a fazer tudo o que você menos deseja fazer no momento: mover-se. A paz é para poucos, e, com certeza, não para bêbados que acordam sobre o próprio vômito.

– Zé! – era Silas, abrindo a porta entrando no bar. O boteco só abria suas portas ao final da tarde. A luz do sol o acompanhou, reluzindo a bebida cor de ouro dentro do copo de Fontes e obrigando-o a levar as mãos aos olhos.

– Fecha isso para de gritar, caralho!

– Você dormiu aqui? – Silas andou rumo a ele. O rosto amanhecido revelava os roxos da surra, fazendo Fontes se questionar como estaria o próprio rosto. A janela na arcada dentária de Silas era cômica. – Seu infeliz, tô te caçando já faz umas horas.

– Por quê? – ele virou o copo. – Estão vindo atrás de nós, né? Somos dois desgraçados mortos...

– O quê? – Gonçalves pareceu surpreso por um instante, mas sua ficha caiu. – Não! Diabos, não! Ainda quero viver minha medíocre vida por mais um século e meio.

– O que foi então?

– Cara, ontem à noite aconteceu a maior chacina nesse inferno de cidade. Os caipiras e os índios... porra! Ninguém esperava que chegasse a tal nível. Ainda mais depois que a cavalaria chegou, descendo o pau em todo mundo. Pelo visto, não estavam com medo nem destes caras. Mas como alguém poderia saber o que viria?

Fontes pensou um pouco, mas acenou que sim.

– De três gatos pingados saltaram para uma dezena de caipiras, malucos por sangue, e depois mais! Eles apanharam e apanharam feio. Mas depois se juntaram de novo... estavam pirados, Zé. Completamente pirados. Foram até a Cachoeira Sapé, gritando, ameaçando, cobrando...

– E o que houve?

Silas se calou.

– E o que, Silas? Fala logo, caralho!

– Os índios também não gostaram muito da ideia desse povo chegando perto da aldeia... reuniram seu próprio grupo de homens e mulheres dispostos a colocar um ponto final naquela baderna e partiram pra cima com tudo. Você pode imaginar...

Fontes imaginou. Era um maldito filme de faroeste. A eterna dicotomia entre a ficção realidade; a vida imita a arte ou a arte imita a vida?

– Porra...

– Vamos lá, logo, cacete! – Silas gritou.

– Fazer o quê? Já não morreram todos? – Puxava o cigarro com a mão direita e levou a esquerda ao copo. MALDITOS DEDOS! Não se acostumaria nunca com aquilo.

– Eu não sei você, Zé, mas tudo que quero agora é mostrar serviço. Não quero dar motivos pro Suíço sumir comigo da face da Terra. Já tem muita gente indo embora desse planeta.

Fontes deixou o copo no balcão. Ele tinha razão.

– E além do mais... – podia-se ver um sorriso implícito em seu rosto. – Você não quer mesmo ver uma cena dessas?

Malditos abutres.

Fontes refletiu, imaginando dezenas de indígenas, brancos e negros lançados ao chão, dividindo o lençol vermelho que corria sob todos eles. Homens e mulheres vítimas da própria ignorância, que perderam o senso de humanidade e se lançaram para uma última orgia sangrenta; uma chacina para ficar na história de Nessuno.

Mas

(malditos abutres)

era claro que ele queria ver a cena. Acenou em positivo e seguiu o colega.

– Você tá um trapo, Zé.

– Você também.

– E como tá a mão?

– Péssima. Como se faltassem dois dedos nela.

Um Perverso Tom de VinhoOnde histórias criam vida. Descubra agora