Capítulo 2: sagrada quinta-feira - Parte 1 de 1

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Zé, seu puto, venha aproveitar essas delícias! – o detetive Silas, com o rosto vermelho e inchado, molhado de suor, chamava seu colega enquanto apertava os seios das duas mulheres que sentavam, sorridentes, em seu colo.

O detetive José Fontes olhou para o amigo, não compreendendo como ele conseguia manter-se despreocupado, mesmo com mais um sumiço infantil na cidade. Era uma noite de quinta e, até o horizonte que o pensamento de Fontes poderia alcançar, tudo de mais memorável acontecia nas quintas-feiras. Houve um par de orgias, ele se lembrava; houve a vez que Toninho entrou no bar gritando que vira espaçonaves sobrevoando a mata, e até mesmo dissera ter visto alguns alienígenas na rua (sempre na quinta-feira); e não poderia deixar de mencionar quando Silas forçou um forasteiro, que estava dando uma de engraçadinho para cima da acompanhante do homem da lei, a simular sexo oral no braço aleijado do Carlão, o dono do bar.

Ah, as quintas-feiras...

Muitos se encontravam no boteco do Carlão, deliciando-se com as garotas, apostando o dinheiro que ganharam durante a semana, bebendo o álcool que era ofertado a um preço negligente, fumando a maconha barata que era vendida na cidade e cheirando as fileiras de pó colombiano que eram esticadas pelas velhas mesas redondas de madeira roídas de cupins.

Não seria nada além do sensato e do comum se levantar e seguir ao encontro de Ana, que o olhava desde que ele chegara, mexendo nos longos cabelos de um tom laranja desbotado e descendo a mão para o meio das pernas, sorrindo. O detetive Fontes estava habituado àquela vida; não se imaginava vivendo de outra forma e sentia-se abençoado por viver em Nessuno. Os homens e mulheres, que no Carlão estavam, também se sentiam

(libertas quæ sera tamen!)

assim.

Naquele ponto no interior de Minas Gerais, os vícios recebiam tratamento especial, e as pessoas ali concordavam que assim havia de ser. Contudo, o sumiço de outra criança abalava Fontes; mesmo após o quarto copo de rum, a tradicional bebida dos puteiros de Nessuno, quando outrora se sentiria propenso a caminhar para um dos palcos improvisados e depositar alguns cruzeiros na calcinha de qualquer que fosse a dançarina. Mesmo nessa situação não conseguia esquecer o rosto choroso da mulher lamentando o desaparecimento de sua pequena. "Ela não voltou da escola!", as lágrimas corriam pela face negra da mulher. "Ninguém a viu! Ninguém sabe onde ela tá! Por Deus, senhor, você tem que me ajudar..." Recordava-se da força com que ela apertara sua mão. Seus dedos estavam gelados.

– A erva num bateu bem, Zé? – Toninho perguntou, sentando-se à sua frente. O mesmo franzino cheirador de cola de sapateiro de cabelos crespos que ajudava Carlão, vez ou outra, servindo as mesas e limpando o banheiro. Desempenhava essas funções somente quando não estava envolvido com experiências extraterrestres e o trabalho na sapataria não era .

– Não é isso, Toninho. Não consigo esquecer uma merda que me aconteceu hoje.

– Fodido, cara – respondeu levantando-se. Fontes não seria uma boa companhia para a noite; talvez outra hora.

O detetive manteve-se sentado, encarando o copo que ia bebericando.

Silas, notando seu amigo abatido – Fontes era um cara misterioso e calado às vezes, mas Silas julgou que naquela noite, em especial, já passava do normal –, levantou-se, estapeando o traseiro nu de uma das moças, e foi ao seu encontro.

– O que tá havendo, meu velho? – disse, sentando-se e ajeitando seu cinto na tentativa de disfarçar um pouco a saliente barriga.

– A criança. Já são doze crianças que desaparecem, Silas. Doze!

Silas fechou o rosto, torcendo o lábio. Odiava discutir trabalho enquanto se divertia.

– Deixa de besteira e vem comigo. Aqui não é lugar pra discutir trabalho. Já disse... crianças desaparecem! Não estamos num filme de terror. A gente já fez tudo o que podia, Zé. Ouvimos as últimas pessoas que viram os meninos; rodeamos essa cidade toda e até o mato entorno dela. Nossos colegas e os militares das cidades vizinhas e da capital já estão avisados. Não duvido que o próprio presidente esteja sabendo disso! O que mais você quer fazer? Começar a cavar buracos para caçá-los igual cachorros? Porra, já fizemos tudo que podíamos! Não estrague minha noite com isso. Minha consciência está mais limpa que água benta.

– Você tem razão – levantou-se.

– Vem comigo? – Silas sorriu.

– Vou para casa.

Sério? Vá se foder, Zé! – Silas se pôs de pé, voltando para suas companheiras. – Cara esquisito do caralho.

Fontes não se importava com essa atitude; conhecia bem o colega e seu gênio. O errado, afinal, era ele próprio. Eram seus devaneios que atrapalhavam o ritmo da noite. Da sagrada quinta-feira! Mas aquele sentimento de que as coisas tomavam proporções muito grandes não cessava. Já eram muitas crianças. Elas fogem e desaparecem, claro... não são os seres mais racionais e com o maior instinto de segurança existentes. Mas tantas? Algo a mais estava acontecendo em Nessuno, e ele, em um raro momento de auto-observação, sentiu que deveria fazer alguma coisa. Agir! Não era, entretanto, um trabalho ao qual estivesse habituado. Estava mais acostumado a receber dinheiro em envelopes fechados – e não declarados – por serviços paralelos prestados ao Max Suíço. Sabia fazer as pessoas falarem, e, por esse motivo, era um grande agente da lei – e da ORDEM – aos olhos dos mandatários de Nessuno.

O cheiro de suor, maconha e cachaça acompanhava-o até mesmo fora da espelunca.

O local onde o bar do Carlão se situava era afastado do centro e não tinha acessos pavimentados. O boteco ficava em um canto mal iluminado da cidade, há uns dez metros de um matagal que se estendia até um riacho. O lugar, que fora uma vez a própria casa do Carlão, atraía clientes que buscavam mais devassidão em suas vidas e ao mesmo tempo, mais discrição frente aos olhos diurnos de Nessuno. Ganhara fama com o tempo e servia de referência para os encontros escusos da cidade. Lá, sabiam, encontrariam o que desejavam... e todos desejavam as mesmas coisas. Sexo, bebidas, jogos de azar, drogas e alguma alma semelhante, com a qual poderiam compartilhar sua própria sordidez.

ZÉ! – ele ouviu o grito à medida que atravessava a estreita estrada de terra.

Fontes olhou para trás e avistou Ana encostada na parede; formava uma bonita imagem que contrastava com os tijolos de barro mal pintados da fachada do Carlão. Os cabelos de cor laranja destacavam-se na noite; o tom era ampliado pela luz do lampião ao lado da porta de entrada. Ele notou que o nariz de Ana sangrava – o vermelho ganhava vida na pele branca. Não poderia deixá-la daquela forma, tal como não pôde nenhuma das vezes anteriores. No fundo, adorava o gosto amargo dos lábios daquela mulher. Sorriu, e ela, apertando seu casaco cheio de plumas negras, de forma até mesmo a ocultar seu generoso decote em v, correu rumo a ele. Pela cor da bebida, ela trazia uma garrafa de conhaque ou rum, balançando junto às coxas cobertas por uma fina meia-calça.

Os pensamentos acerca das crianças se esvaíram e eles seguiram para o seu Dodge Dart; cortesia do Suíço por seus serviços prestados à comunidade. Era bom ter alguém para aquecer sua cama. Gostava de Ana e amava o fato de que seu perfume e seu gozo se manteriam nos lençóis por alguns dias.

Por fim, aquela noite não se diferenciaria tanto de uma noite de quinta-feira qualquer.



Nota do autor: "cruzeiro" era a moeda oficial do Brasil na época.



Um Perverso Tom de VinhoOnde histórias criam vida. Descubra agora