A marola flutuou dentro da camionete Chevrolet C-10 até o final da tarde; tempo suficiente para discutirem as curvas de Ana e a noite anterior de Silas, que, como era usual, entrou em uma briga com um de seus colegas de cachaça, enquanto discutiam qual era o melhor atacante de todos os tempos. "Pelé ganhou três copas do mundo!", o colega pontuava, mas Silas, atleticano doente, discordava, "Dadá era queixo no peito e queixo no ombro, como atacante tem que ser!" As vozes aumentaram, eles se levantaram e, por fim, se jogaram ao chão, com as mãos firmes no pescoço um do outro. Aquele santista filho de uma quenga nunca entendeu mesmo de futebol, comentou Silas, aos risos.
Já famintos e sedentos por uma dose de qualquer-coisa-que-tenha-álcool, foram para o café da Lúcia, no centro de Nessuno, se esquentarem para a maratona que se seguiria.
No caminho, cruzaram com um colega policial militar surrando um jovem indígena na calçada. Na parede via-se pichado SUMAM DE NOSSAS TERRAS BRANCOS IMUNDOS. "VOCÊ VAI APRENDER A LIÇÃO, ÍNDIO FILHO DA PUTA!", o PM gritava, chutando o infeliz, que se encolhia, sem reação. Mais um pobre coitado que infringira a ORDEM ou mais um terrorista, comunista, que atentava os cidadãos? Fato é que vez e outra havia um confronto entre nativos da região e fazendeiros com o apoio do povo da cidade; morriam uns pobres coitados e ficavam vários feridos; depois as coisas se acalmavam e voltavam ao normal. Era como se de tempos em tempos, brancos, negros e indígenas precisassem de um conflito para poderem transpirar seu ódio e sua sede por violência, estampando o chão com o sangue dos seus semelhantes.
Como a cena não tinha nada a ver com os detetives, eles seguiram seu caminho.
O café da Lúcia era a parte de baixo de um sobrado antigo no centro, uma construção barroca que em outro momento pertencera ao seu pai, conhecido criador de gado da região. Lúcia nunca fora uma garota que se submetesse aos gostos da família e já na doença do velho, com a mãe falecida, em meados da década de 1960, começou a abrir o andar de baixo da casa à noite para festas. E com o tempo foram surgindo mesas e um balcão no interior do espaço até se tornar o que era então. As festas noturnas deram lugar a um ambiente movimentado, mas mais calmo, acompanhando o ritmo de sua dama. Para somar, ainda se servia lá o melhor pão com linguiça da . Além do mais, a bebida não custava aos detetives um trocado sequer, motivo pelo qual ela se tornava isenta de contribuir com a propina. Eles vista grossa para ela de bom grado. Não esqueceriam as boas noites que passaram naquele lugar na adolescência. Eram muitas as recordações. Somando a isso, vez ou outra havia música sendo tocada e Lúcia, já nos seus cinquenta anos, mas mantendo sua jovialidade com a pele firme e sempre com os saltos sob os pés, era uma ótima anfitriã. Tratava-os como mereciam e, como toda balconista, mantinha os ouvidos alertas; sabia das coisas.
– O que vão beber, meus lindos?
– Oh, minha bela Lúcia, desce o que tiver de mais caro! – Silas disse.
– Não se pode dar leite para um homem que ele já vem querendo as tetas...
– Duas doses de uma branquinha e dois pães com linguiça serão o suficiente, Lucinha – Fontes disse, sentando-se ao balcão.
– Quando ensinará bons modos pra esse homem, Zé? – Postou os copos sobre o balcão, passando em seguida a garrafa sem rótulo, de cachaça artesanal, sobre eles.
– Já tentou treinar porcos, Lucinha? Não dá pra fazer com que compreendam o cavalheirismo – sorria.
– Oh, me poupem de tanta besteira! Algumas pessoas simplesmente não conseguem conviver com um ser dominante como eu.
Fontes e Lúcia riram; conheciam a peça havia uma longa data.
– A coleta será grande hoje, rapazes?
– Bom, os desgraçados estão ganhando uma grana preta, então é bom que seja, para que não haja nenhum problema maior – Silas pontuou, bebendo de seu copo. A bebida descia quente.
Fontes, enquanto ouvia, enrolava um fumo, hábito que tinha especificamente quando ia no bar da .
– Algumas línguas andam dizendo que o tal do Danilo está reclamando do preço... – disse a dona do bar.
– Deixe que reclame, Lucinha! Quando aquele imbecil põe os olhos em mim consigo até mesmo sentir o cheiro da bosta pronta. Ele é um medroso, infeliz. E, como você sabe, falam pelas costas aquilo que nunca dirão em nossa cara.
– Se você tá falando, Silas... – ela olhou para Fontes – você está um pouco calado hoje, Zé. – Fontes acendia o fumo que acabara de enrolar.
– Meu pobre amigo anda preocupado com as crianças que andam desaparecendo. É um cara sentimental.
– Silas, não fale assim! Essa história é horrível! O povo anda com medo mesmo nos últimos . – Lúcia disse, voltando a encher os copos e colocando uma fininha para si mesma. – A dona Eleusa – a mesma da qual Fontes se lembrara – está devastada. É uma lástima. Disse que sua filha nunca se envolveu com nada dessa cidade, que era uma menininha de Deus e sempre ia à missa aos sábados e domingos. É uma pena. – Fontes tragava seu fumo, concordando. – Já ouvi culparem até os pobres índios...
– É mesmo? – Fontes perguntou.
– Uns malucos caipiras, uns gêmeos bestas de cara redonda. Estavam bebendo aqui outro dia. Disseram que estavam caçando capivaras e seus cachorros encontraram alguns ossos que pareciam humanos... falaram que só podia ser macumba de índio. Como sempre... são uns tolos.
– E como não ficamos sabendo nada disso? – Fontes a interrompeu.
– Diziam que não queriam se meter com essas coisas. Eles não queriam problemas.
– E por que você não nos disse nada, Lúcia?
– Como não? Acabo de dizer, meu lindo – olhou para ele como se não entendesse o que ele queria dizer. – Isso foi há dois ou três dias apenas. Vocês moram naquele pardieiro do puto do Carlão e esquecem a rainha de vocês – ela ri, virando-se para pegar um copo para um cliente que entrara no lugar.
– Pare de plantar abobrinhas na cabeça do meu amigo, Lucinha. Não vê que ele já está impressionado? O mais provável é que fossem ossos de cervos ou algum bicho qualquer. Esses homens costumam ser tão burros quantos parecem.
– Sabe me dizer quem eram, Lúcia?
– Por Deus... – Silas reclamava.
– Não por nome – ela se voltou para eles outra vez. – Mas geralmente eles aparecem por aqui quando a noite cai. Caso você esteja aqui, te mostro os .
– Por favor – terminou sua bebida. – Acho melhor irmos em frente, não, Silas?
– Espero que não esteja falando de uma busca por ossos, Zé.
– Não por hora. O tal do Danilo já deve ter aberto seu boteco.
– Um brinde à sua sensatez, Zé! – Silas sorriu e virou o seu copo. – Até mais, Lucinha, delícia!
– Até qualquer hora, rapazes.
O pôr do sol caía sobre Nessuno quando os detetives pisaram fora do café. Fontes fitava o horizonte, levando o fumo enrolado à boca, reflexivo; os olhos perpassavam grandes painéis com propagandas de bebidas e cigarros – o charme escorria dos perfeitos rostos dos modelos.
– Você realmente acredita numa merda dessa, Zé? Digo, ossos de crianças... isso soa como ficção barata.
– Eu não sei... mas é bom ficar alerta. Vamos.
Nota do autor: "macumba" é usado no livro como uma característica da ignorância dos personagens que a relaciona aos indígenas. A macumba é um instrumento de percussão de origem africana usado em terreiros de cultos afro-brasileiros. É associada, erroneamente, por alguns populares, a rituais profanos, como o texto demonstra.
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Um Perverso Tom de Vinho
Mystery / ThrillerNuma cidade boêmia como Nessuno, tem-se a impressão de que a noite existe para abrigar os fracassos, os pecados e os prazeres mundanos. Esvaziar um copo de bebida quente com a lua dominando o céu torna-se o sentido da vida. Vez ou outra, um novo mem...