Capítulo 29: faroeste mineiro - Parte 2 de 3

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Multidões são organismos esquizofrênicos; células guiadas pela voz de algum demagogo. Não existe unidade em uma multidão. O mecanicismo se ausenta e o organicismo emerge; todos tornam-se membros de um único corpo. Não há medos, remorsos e nem espaço ou tempo para questionamentos. O ideal do líder é a única verdade... mesmo que seja um doente com o ego inflado pelas vozes que o seguem. Mesmo que o discurso seja horrendo e/ou desumano. O organismo prevalece.

Foram necessárias algumas horas para que os sertanejos revoltosos se aproximassem da Cachoeira Sapé. Brancos e negros, na maioria camponeses influenciados pelos pais e vizinhos com seus preconceitos. Como em algumas partes do mundo se culpam os estrangeiros pelos problemas sociais e até mesmo individuais, alguns habitantes de Nessuno, sendo os estrangeiros em terras brasileiras, preferiam culpar aqueles que sempre estiveram nas suas terras. Terras, que por algum complexo de grandeza europeu, estes julgavam sua propriedade. Claro! É certo que os indígenas, vivendo suas vidas em meio à natureza, distantes da cidade, eram os culpados pelas más safras, pelo azar no jogo e até mesmo pela gonorreia que se pegara na noite anterior. Certamente era mais fácil culpá-los pelas dificuldades que viviam, pela própria falta de caráter, pelo desemprego e pelos gritos da patroa.

NÃO ESQUEÇAMOS DO SUMIÇO DE NOSSAS CRIANÇAS!

MALDITOS, SUJOS, DESGRAÇADOS DE PELE VERMELHA! FEITICEIROS!

MORTE A ELES!

Alguns carregavam tochas, outros, rastelos de arar, garrafas quebradas, enxadas, pás e picaretas. Todos carregavam ódio e sede por sangue. No fundo, queriam fazer algo notório. Serem lembrados. Anteviam os pensamentos dos outros moradores: mas justo ele? Eu não acredito! Eu o conhecia... aquele medroso não teria coragem...

Sentiam-se heróis.

– EI! – o que tomara a liderança do grupo gritou. O mesmo que passara a tarde em medo, agora deitava em coragem. O ego não cabia no vão da floresta. – VIEMOS AQUI PEGAR NOSSAS CRIANÇA, DESGRAÇADOS! SEUS FILHOS DO DEMÔNIO!

– É!

– É ISSO AÍ!

– ONDE ELAS ESTÃO?

– APAREÇAM, SEUS FILHOS DA PUTA! – ele entoava. A garganta ardia. Lembrava-se de sua mulher o rebaixando pelas contas não pagas, pelo seu desempenho sexual, pelas bebidas; de todas as dívidas, de todas as dificuldades pela qual passara na vida. Também se lembrava dos dois amigos mortos. Sentia que alguém tinha que pagar... e pouco importava quem. Era delicioso gritar e expressar o rancor em alto e bom tom; mandar para fora todo aquele ódio que estava entalado em seu estômago, tirando suas noites de sono e fazendo-o pensar em suicídio. – EI!!

Quando se grita a plenos pulmões, como o bando fazia, o mais provável é que, sim, alguém apareça. E foi o que ocorreu.

Alguns kayapós de cabelos longos e peles pintadas começaram a surgir do outro lado da cachoeira. Traziam rostos carrancudos; a raiva também os acometia. Não se recebe com sorrisos aqueles que chegam com insultos na sua casa. Não seriam bodes expiatórios para um bando de malfeitores sem caráter que desde sempre desprezaram suas crenças e a vida que levavam e que agora buscavam cegamente alguém para assumir a culpa do sumiço de suas crianças. Afora toda uma história de matar seu povo e se apossar de sua terra. Não mais uma vez. Não desta vez.

As folhas das árvores farfalhavam. As tochas bruxuleavam, revelando o suor frio de alguns membros da multidão. Adrenalina? Medo?

– Aí... – a voz vacilava. O líder pigarreou; o que afetou os que o seguiam. – Aí vocês estão... – mas já era tarde demais para voltar atrás. Não seria o medroso, o fujão...

Não dessa vez.

Os índios surgiam aos pares; traziam facões nas mãos. Ao menor movimento, o mais certo é que partiriam sobre os invasores.

Olho por olho... dente por dente.

Não é o que dizem?

A vida é cheia de ironias e às vezes muito nos surpreende. O mesmo medroso do cerradão, com lágrimas nos olhos, foi o primeiro a correr na direção dos índios. Rugia, levando as cordas vocais ao limite, erguendo a pá, que começava a ganhar muito peso. Chorava... as lágrimas voavam de seu rosto.

– AAAAAAAAAAAAAH!

Seus companheiros de chacina o olhavam, perplexos.

E então ele parou frente ao primeiro índio. Estático. Todos atrás dele observavam a pá cair de suas mãos. O kayapó, por outro lado, observava seus olhos arregalados e a boca aberta; o medo e a vida saíam por entre os lábios.

O sertanejo olhou para baixo, notando o facão atravessado em sua barriga. Era seu fim. Ele sorriu; novamente o paradoxo da vitória e da derrota. Só que desta vez, a felicidade provinha da paz de estar morrendo. Não mais preocupações neste mundo sujo chamado Terra.

Seu corpo caiu de costas no chão. Houve silêncio e tensão... e um grito surgiu no meio dos que observavam.

Ninguém soube quem gritara.

A multidão explodiu.

Um Perverso Tom de VinhoOnde histórias criam vida. Descubra agora