A imagem do local no qual Fontes estivera dias antes o deixara mudo; catatônico. Filmes antigos e fotos sobre a Primeira Guerra vieram-lhe à cabeça, que começava a doer. Uma coisa era a história, distante e inalcançável. Podia-se acessá-la em segurança a qualquer momento. Outra coisa bem diferente era presenciar uma cena como aquela. Vivê-la. A mente de Fontes entrou em torpor. Vieram-lhe fotos da Primeira e da Segunda Guerra na cabeça, os campos de concentração do Füher; homens estirados ao chão na Guerra do Paraguai representados nas pinturas que uma de suas professoras lhe mostrara; imagens da peste negra; pensamentos sobre os navios negreiros e toda a desgraça que o homem já se propiciou.
A sua frente, corpos mutilados de homens e mulheres lançados ao chão, deitados uns sobre os outros, sobre suas armas, banhados pelo seu sangue e pelo sangue de amigos e inimigos, vítimas e culpados pela própria irracionalidade; corpos lançados à cachoeira, tingindo-a com seu fluxo vital. Corpos... homens e mulheres; mães e pais e filhos tornaram-se apenas
(estoque)
corpos. E para quê?
Fontes nunca havia se deparado com uma cena assim. Silas vomitou.
A senhora Morte tivera seu baile... oh, se tivera!
Dançara pela madrugada, brandindo sua foice, bruxuleando pelo ar frio sob sua vestimenta escura.
Os homens ajoelhavam-se aos seus pés.
As mulheres ajoelhavam-se aos seus pés.
O mundo ajoelhava-se aos seus pés.
Ela sorria.
Vermelho e negro...
A noite lhe pertencia.
E a dança continuava.
Policiais civis e militares andavam pelo local. Olhavam desolados para os corpos. Corpos... viam amigos e conhecidos estirados ali! O peito doía e lágrimas caiam. Estavam sem reação, contemplando uma das muitas facetas da loucura humana. Os próprios guarás, tão temidos por alguns, não ousavam se aproximar.
Quem são os animais, afinal?
– O que vamos fazer aqui? – Fontes perguntou.
– Eu... eu não sei.
– Devemos ajudá-los? – Fontes apontou para os colegas que caminhavam em torno da cachoeira. Os dedos faltantes já não lhe pareciam o maior problema do mundo.
Sem uma resposta explícita, Silas começou a caminhar em direção à água.
– O mal se apossou desse lugar... – ele comentou, em voz baixa.
Fontes não negaria isso.
– Como continuar a vida depois de ver uma desgraça dessas? – Virou-se para Fontes. – Como simplesmente ignorar que estivemos aqui?
O amigo sacudiu a cabeça. Não sabia.
– Acho que deveríamos voltar... – Fontes disse.
– Espere... – Silas insistiu, voltando os olhos para a água vermelha. – Não deveríamos, sei lá, fazer uma prece ou algo do tipo?
– O quê?
– Você me ouviu, porra. Eu sei lá... – deu de ombros – parece o certo.
Aquela imagem afetara o amigo mais do que ele pensara. Rezar? Silas? Nunca pensou que pudesse ouvir isso; talvez por esse mesmo motivo tenha concordado.
Fontes balançou a cabeça e ambos fecharam as mãos entre as pernas, baixando os olhos. Procuravam pensar em alguma coisa que pudesse tocar o coração de Deus, esperando que Ele ouvisse; que mostrasse Sua presença, que os confortasse. Campos de batalha atiçam ou terminam de vez com a fé de um homem.
E, contrariando todas as probabilidades, uma resposta veio, fazendo-os arregalar os olhos, olhando em volta – tanto eles, como os policiais do outro lado. Não era Deus, no entanto. Eram gritos. Gritos de medo.
– SOCORRO! ALGUÉM! – a voz de uma menininha, ao que parecia, começava a ser audível. O farfalhar das folhas indicava: ela estava próxima. – SOCORRO!
– Zé! – Silas apertou o ombro do amigo.
– Eu ouvi – ele respondeu, movendo-se para os lados. Silas fez o mesmo e, não muito distante deles, os policiais também começaram a se agitar. – EI! ESTAMOS AQUI!
– EI!
– SOCORRO! – o grito aumentava. Era possível ouvir o choro. Ela se aproximava.
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Um Perverso Tom de Vinho
Mystery / ThrillerNuma cidade boêmia como Nessuno, tem-se a impressão de que a noite existe para abrigar os fracassos, os pecados e os prazeres mundanos. Esvaziar um copo de bebida quente com a lua dominando o céu torna-se o sentido da vida. Vez ou outra, um novo mem...