Capítulo 29: faroeste mineiro - Parte 3 de 3

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A imagem do local no qual Fontes estivera dias antes o deixara mudo; catatônico. Filmes antigos e fotos sobre a Primeira Guerra vieram-lhe à cabeça, que começava a doer. Uma coisa era a história, distante e inalcançável. Podia-se acessá-la em segurança a qualquer momento. Outra coisa bem diferente era presenciar uma cena como aquela. Vivê-la. A mente de Fontes entrou em torpor. Vieram-lhe fotos da Primeira e da Segunda Guerra na cabeça, os campos de concentração do Füher; homens estirados ao chão na Guerra do Paraguai representados nas pinturas que uma de suas professoras lhe mostrara; imagens da peste negra; pensamentos sobre os navios negreiros e toda a desgraça que o homem já se propiciou.

A sua frente, corpos mutilados de homens e mulheres lançados ao chão, deitados uns sobre os outros, sobre suas armas, banhados pelo seu sangue e pelo sangue de amigos e inimigos, vítimas e culpados pela própria irracionalidade; corpos lançados à cachoeira, tingindo-a com seu fluxo vital. Corpos... homens e mulheres; mães e pais e filhos tornaram-se apenas

(estoque)

corpos. E para quê?

Fontes nunca havia se deparado com uma cena assim. Silas vomitou.

A senhora Morte tivera seu baile... oh, se tivera!

Dançara pela madrugada, brandindo sua foice, bruxuleando pelo ar frio sob sua vestimenta escura.

Os homens ajoelhavam-se aos seus pés.

As mulheres ajoelhavam-se aos seus pés.

O mundo ajoelhava-se aos seus pés.

Ela sorria.

Vermelho e negro...

A noite lhe pertencia.

E a dança continuava.

Policiais civis e militares andavam pelo local. Olhavam desolados para os corpos. Corpos... viam amigos e conhecidos estirados ali! O peito doía e lágrimas caiam. Estavam sem reação, contemplando uma das muitas facetas da loucura humana. Os próprios guarás, tão temidos por alguns, não ousavam se aproximar.

Quem são os animais, afinal?

– O que vamos fazer aqui? – Fontes perguntou.

– Eu... eu não sei.

– Devemos ajudá-los? – Fontes apontou para os colegas que caminhavam em torno da cachoeira. Os dedos faltantes já não lhe pareciam o maior problema do mundo.

Sem uma resposta explícita, Silas começou a caminhar em direção à água.

O mal se apossou desse lugar... – ele comentou, em voz baixa.

Fontes não negaria isso.

Como continuar a vida depois de ver uma desgraça dessas? – Virou-se para Fontes. – Como simplesmente ignorar que estivemos aqui?

O amigo sacudiu a cabeça. Não sabia.

– Acho que deveríamos voltar... – Fontes disse.

– Espere... – Silas insistiu, voltando os olhos para a água vermelha. – Não deveríamos, sei lá, fazer uma prece ou algo do tipo?

– O quê?

– Você me ouviu, porra. Eu sei lá... – deu de ombros – parece o certo.

Aquela imagem afetara o amigo mais do que ele pensara. Rezar? Silas? Nunca pensou que pudesse ouvir isso; talvez por esse mesmo motivo tenha concordado.

Fontes balançou a cabeça e ambos fecharam as mãos entre as pernas, baixando os olhos. Procuravam pensar em alguma coisa que pudesse tocar o coração de Deus, esperando que Ele ouvisse; que mostrasse Sua presença, que os confortasse. Campos de batalha atiçam ou terminam de vez com a fé de um homem.

E, contrariando todas as probabilidades, uma resposta veio, fazendo-os arregalar os olhos, olhando em volta – tanto eles, como os policiais do outro lado. Não era Deus, no entanto. Eram gritos. Gritos de medo.

SOCORRO! ALGUÉM! – a voz de uma menininha, ao que parecia, começava a ser audível. O farfalhar das folhas indicava: ela estava próxima. – SOCORRO!

– Zé! – Silas apertou o ombro do amigo.

– Eu ouvi – ele respondeu, movendo-se para os lados. Silas fez o mesmo e, não muito distante deles, os policiais também começaram a se agitar. – EI! ESTAMOS AQUI!

– EI!

– SOCORRO! – o grito aumentava. Era possível ouvir o choro. Ela se aproximava.

Um Perverso Tom de VinhoOnde histórias criam vida. Descubra agora