Capítulo 26: o sangue aduba o solo - Parte 2 de 2

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Apenas os perdedores se mantinham num lugar como aquele, num dia como aquele, numa hora como aquela. Os fracassados, a escória da sociedade, marginalizada e esquecida. As melhores pessoas, pensava Fontes.

Há alguma palavra para o fetiche com perdedores? Se sim, apenas os poetas sabem...

Fontes se sentou, pedindo um Presidente e segurando o pulso esquerdo. Queria um longo gole para aliviar a dor. Os medicamentos ajudavam, mas eram apenas placebo quando comparados ao álcool. O detetive olhou em volta; a maioria dos presentes mantinha os rostos colados junto à mesa ou ao balcão. Pelo menos por um instante, por menor que fosse, eles estavam livres da dor... talvez a dor de ser esquecido, contudo, fosse pior que a perda dos dedos.

Carlão voltou com a bebida. Nem ao menos parecia cansado. Como conseguia?

– O que houve com a mão, Zé? – O copo tocou o balcão.

– Fiz merda...

– Todos fazemos, Zé... todos fazemos. A questão é: você consegue viver com a merda que fez? Pense pelo lado bom, pelo menos você ainda pode tocar uma. Nos deixaram a mão boa – e mostrou o próprio cotoco, sorrindo.

Fontes encarou o homem e sorriu, sem graça, voltando-se para o copo. A verdade é que não sabia; não sabia nem se viveria. O Suíço era um sádico, sedento por respeito e poder. Até onde o conhecia, poderia acordar com a boca cheia de formigas, jogado numa vala, na manhã seguinte. Aquele poderia ser seu último trago! Mas o que ele poderia fazer? Fugir? Deixar Nessuno? Dificilmente. Seria difícil se adaptar a outro lugar... a cidade como uma redoma de corrupção e fracasso. Um dos destinos de muitos homens em fuga. Só havia uma coisa a fazer. Achar as crianças? Não... isso já lhe causara trabalho e decepção suficientes para o resto da vida; não era um detetive, era apenas um homem pago para assustar outros homens. Matar o Suíço? Não... não... só lhe restava beber.

Pediu outra dose.

– Posso apagar aqui, Carlão? – e tirou todo o dinheiro que trazia consigo, postando-o sobre o balcão. – Apenas quero... você sabe... beber.

Carlão assentiu, pegando as notas. Notou uma expressão de no semblante do homem, mas achou melhor não dizer nada. Cada um que cuide dos seus problemas.

– Fique à vontade, detetive – disse, colocando na mesa uma garrafa de Presidente. Agora sim, ele ficaria.

Pelo menos por um tempo.

A imagem de seu corpo jogado em uma vala com formigas se aglomerando em sua boca não lhe saía do pensamento. Podia ver a própria barriga toda furada pela pólvora enquanto o sangue adubava o solo de Nessuno.

Tornou a encher o copo.

Um Perverso Tom de VinhoOnde histórias criam vida. Descubra agora