Capítulo 7: o sentido da vida - Parte 2 de 2

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Numa cidade boêmia como Nessuno, tem-se a impressão de que a noite só existe para abrigar os fracassos, os pecados e os prazeres mundanos. Esvaziar um copo de bebida quente com a lua dominando o céu torna-se o sentido da vida.

Ao fundo do café da Lúcia, num palco redondo elevado, um homem negro com a barba , chapéu Panamá, vestindo um terno cinza, sentava-se em um banquinho; o corpo do violão encontrava suas pernas e o cigarro lhe beijava os lábios. Ele esvaziara seu copo e o pousara sobre o chão, acariciando as cordas do instrumento como uma dama acaricia seu gato persa. Ao entrar, Fontes perdeu-se por um momento ao som das primeiras notas; todos pausaram as conversas quando a voz do homem saiu de sua alma para inundar o local.

O rapaz é bom... – disse Lúcia que, do outro lado do balcão, admirava-o com um sorriso e um cigarro entre os dedos.

José Fontes, começando a enrolar seu fumo e olhando na mesma direção, concordou.

– Como você tá, Zé? – já postava um copo em sua frente, sacando a garrafa, mas ele sinalizou para que ela aguardasse e colocou o Passport sobre o balcão.

Ela o serviu com sua bebida.

– Bem, Lucinha. E os tais dos gêmeos que encontraram os ossos...

– Ah, claro. Já tava esquecendo! A voz desse homem... Deus! – seu tesão pelo cantor aumentava à medida em que ela pensava em chamá-lo para subir à parte de cima do sobrado no calar da noite.

– De onde ele é?

– Da Bahia. Tá ficando na pensão da dona Valda. Disse que tá tentando a vida pela região e que tocaria apenas pela bebida e pela janta... mas veja os clientes, as , certamente vai ganhar uns bons trocados de gorjeta.

Certamente... – Fontes, bebericava seu uísque.

– Eles estão ali, Zé – apontou para uma das mesas, próxima à entrada.

Fontes se levantou segurando o copo.

– Obrigado, Lucinha. Deixa a garrafa aí.

Os gêmeos estavam sentados um frente ao outro e riam, deixando à mostra os dentes malcuidados sob espessos bigodes. Trajavam-se de forma simples e semelhante e usavam chapéus de palha.

– Senhores, boa noite – Fontes disse, sentando-se junto a eles. – Talvez vocês não me conheçam. Sou Fontes, da polícia. Vamos bater um papo aqui.

– Uai, fizêmo algo errado, sinhô? – um deles perguntou, olhando-o assustado.

– Não, não – Fontes sorriu. – apenas ouvi dizer que vocês encontraram alguns ossos aí no meio do mato e gostaria de ouvir mais sobre esse caso...

– Tudo bem, sinhô – disse o homem que se apresentou como Uílson.

– Boa noite, sinhô detetive – disse o outro sujeito, apresentando-se como Uílton, segurando o chapéu, em mesura.

– O que estão bebendo? – Fontes perguntou.

– Pinga, uai.

Fontes se virou para Lúcia.

– Duas branquinhas e uma dose do meu, Lucinha, por favor – voltou-se para os homens. – Por minha conta – sorriu.

Uílton olhou para seu irmão, pensando na incômoda situação na qual entravam.

– Algum problema? – Fontes perguntou, notando uma mudança de expressão no rosto dos homens.

– Aqui estão as bebidas, Zé.

– Obrigado, Lucinha.

Não é bom ficar falando dessas coisas, sinhô – Uílson se inclinou para o detetive Fontes, falando baixo.

– Quais coisas?

– Esses ossos que vimos... – Uílton interveio. – Só pode ser coisa dos índios daquele lugar. É mió se afastar desses animais.

Índios? Vocês têm certeza?

A dupla olhou para os lados, desconfiada.

Eles mexem com magia negra, sinhô – Uílson disse. – Eles e suas feitiçarias... Cristo! Faltaram bandeirantes e missionários nessas bandas de cá.

Fontes se lembrou das palavras de Silas. Agora não duvidava que acreditavam até mesmo em mula-sem-cabeça.

– Vocês pegaram os ossos? Poderiam me mostrar?

– Não somos malucos! Não encostâmo nenhum dedo naquilo! Deixâmo lá mesmo. Tinha até um crânio humano! Posso te falar isso.

– Um crânio?

– É. O osso da cabeça, sinhô – Uílton tirou o chapéu, apalpando sua cabeça como demonstração.

– Eu sei o que um crânio é, por Deus. Pode parar com isso. Então a gente termina essa cachaça aqui e segue caminho.

Os gêmeos se entreolharam.

– Isso não é um pedido, senhores.

– Uai, de noite não vamos saber te mostrar o lugar, sinhô – Uílton protestou. – E a noite deixa os guarás meio malucos...

Guarás malucos? Céus!, Fontes pensava, forçando-se para manter a calma frente crendices dos homens. Necessitava ver os ossos, o crânio, com os próprios olhos... e precisava deles para isso.

– Amanhã após o almoço, então – disse por fim. – Me esperem aqui na porta do café, que venho encontrá-los – levantou-se, não permitindo a menor possibilidade para discussão. – Foi um prazer, senhores.

Os caipiras assentiram, mas ficaram tensos e pouco tempo depois pediram a conta e foram embora; não desejavam voltar ao lugar em que encontraram aquilo. Na verdade, gostariam muito de nunca mais ter contato com aquilo ou com qualquer coisa do tipo.

– Conseguiu alguma coisa? – Lúcia perguntou à medida que Fontes se sentava ao balcão.

– Ainda não sei – bebia seu uísque.

– Imaginei que não fosse dar em nada. Me desculpe por ter enchido sua cabeça com isso, Zé. – Lúcia não conseguia mais desviar os olhos do cantor por muito tempo. Este já ganhara uns belos trocados postos n o Panamá de cabeça para baixo no chão, mesmo tocando apenas uma meia dúzia músicas.

Nada como um bom violeiro nordestino.

– Não se preocupe, Lucinha – e, de repente, lembrou-se da dona Zira, do seu prédio. – Por acaso você teria um pacote de café pra me arrumar?


Um Perverso Tom de VinhoOnde histórias criam vida. Descubra agora