Nícolas acordou mais tarde do que desejava. Guiava-se pelos sons do exterior; passado certo tempo do dia, os animais se calavam. Contudo, atentando-se aos sons da casa, aos sons de gente, teve a certeza de que o monstro não estava lá. Isso o aliviou. Era sua única chance; a chance deles. Não poderia desperdiçá-la.
Ele sentiu os cabelos de Rita tocarem-lhe o pescoço à medida que ela se aconchegava sem seu peito. A menininha ainda dormia.
Nícolas amolou o canivete por mais alguns minutos – a ansiedade crescia – e passou o dedo pela lâmina que, afiada, feriu a pele da ponta de seu dedo. Lembrava corte de papel, pensou, sorrindo e olhou para os lados, averiguando se alguém estava curioso com seu comportamento. Entretanto, todos estavam em seus exílios mentais. Nícolas então começou a cortar a corda de maneira furtiva e imperceptível para um bando de crianças que preferia viver em seus pensamentos, lembrando-se do carinho e dos abraços de suas mamães. Vamos... vamos! Por favor! Era como tentar cortar um pedaço de pneu. Suas mãos tremiam. Vamos...
Um som seco de rasgo parou os batimentos de seu coração. Um som de liberdade.
Ele tornou a olhar para os lados; ninguém percebera.
– Ei... ei... – Ele afagou o cabelo de Rita, acordando-a. – Rita... escute... você tem que me ouvir... tá bom?
Ela esfregou os olhos, balançando a cabeça.
– Olha... vamos sair daqui... mas você tem que ficar calada, por favor... eu vou cortar sua corda...
– Nico... – ela falou com uma voz mais alta do que ele desejava.
– Psiu! – reprimiu-a, colocando o indicador frente à boca. – Por favor... não fale nada. – Não seria bom que as outras crianças começassem a espernear e gritar. Atrairiam o monstro, certamente. Iriam todos para a maldita fogueira se isso acontecesse. O melhor era sair apenas ele e sua querida; salvá-la era a prioridade, mas depois voltaria... voltaria e salvaria todos... e o mataria. – Eu vou cortar a corda e você não vai falar nada. Entendeu?
Rita balançou a cabeça.
Boa menina.
Nícolas começou a cortar a corda dos tornozelos de sua amiga; fingia estar deitado, dormindo, para não chamar a atenção. A ação demorava mais que sua primeira tentativa, levando-o a temer que
(estava louco, delirando, que continuava preso, morrendo)
a lâmina houvesse perdido o fio; que tivesse sido apenas sorte. Mas o rasco seco e libertador veio em tempo oportuno.
Livres... livres!, fora seu primeiro pensamento... mas Nícolas olhou em volta. Livres?, e lágrimas desceram no seu rosto.
– Segure minha mão com força e não olhe para trás, tudo bem? – Ela concordou. – Não pare por nada... pelo amor de Deus! – Deus..., pensou, questionando sua existência. Que tipo de Deus permitiria isso?
Ele se pôs de pé. O movimento atraiu os olhares. Rita também se levantou. Em uma fração de segundo todos os olhos pairavam sobre o casal de crianças; olhos arregalados e bocas entreabertas. Esperança...
– Por favor... – os pedidos começaram tímidos. As crianças, notando o que acontecia, começavam a rastejar em direção aos dois erguendo seus bracinhos. – Me tire daqui...
– Por favor!
– Me salva!
– Por favor!
E uma euforia tomou conta do lugar. As vozes aumentavam seu tom.
– POR FAVOR!
– ME TIRA DAQUI!
– EU QUERO MINHA MÃE!
– SOCORRO!
E os choros...
Por um momento, Nícolas travou, engasgado com o próprio choro que subia em sua garganta. Queria salvá-los, queria tirar todos de lá. Era tudo o que mais queria! Mas não podia... não havia tempo... não havia... não havia coragem para isso. Era apenas uma criança. O que poderia fazer?
– Nico...
– Feche os olhos e me siga... – ele chorava. – Apenas... por favor...
– SOCORRO!!
– NÃO! NÃO!
– NÃO NOS DEIXE AQUI!
– NÃO NOS DEIXE AQUI PARA MORRER!
Rastejavam, gritando, chorando, erguendo suas mãozinhas.
Nícolas disparou para a porta, puxando Rita pelo braço, e a abriu, fechando-a em seguida. Tudo deveria parecer normal. Precisavam de tempo para fugir; o demônio não podia perceber o que acontecera. Me perdoem... me perdoem!, Nícolas chorava.
– Vamos, Rita...
– Nico... – ela parou, segurando-o. Os gritos ainda vinham da porta ao lado, altos, desesperados. – E eles? – apontou para a porta.
Nícolas não encontrou resposta.
– Vamos! – disse, e a puxou com mais força.
Ela chorava, mas foi. Não queria ficar para trás. O medo era infinitamente maior que a coragem. Eram apenas crianças.
(Me perdoem... me perdoem...)
Crianças que sofreram mais que qualquer adulto merecia; que perdiam a infância em um quarto repleto de baratas e roedores; que nunca mais veriam o fogo da mesma forma; que carregariam um fardo muito pesado caminhando para longe dali... para o resto de suas vidas.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Um Perverso Tom de Vinho
Mystery / ThrillerNuma cidade boêmia como Nessuno, tem-se a impressão de que a noite existe para abrigar os fracassos, os pecados e os prazeres mundanos. Esvaziar um copo de bebida quente com a lua dominando o céu torna-se o sentido da vida. Vez ou outra, um novo mem...