Capítulo 9: há esperança no cômodo escuro - Parte 1 de 1

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A noite era a pior hora para os pequenos.

Começara com o cheiro de fumaça, deixando-os atônitos – olhos vidrados, lábios secos entreabertos e agarrados uns aos outros. Sabiam que o fogo começava a se formar e o temiam; ele era muito mais assustador que qualquer história que tivessem ouvido ao longo dos seus poucos anos.

Ninguém fora levado naquela noite. O Diabo apareceu no quarto, mas para oferecer-lhes comida. Carne vermelha lançada aos pedaços, como se eles fossem cachorros de rua. Água também fora servida em potes que deslizavam até atritarem com alguma criança ou roedor.

Comam – ele disse e fechou a porta, deixando-os no escuro novamente. Contudo, já não temiam a escuridão; a luz das chamas era mais aterrorizante.

Os primeiros a mordiscarem a carne eram os ratos. As crianças só se rendiam quando a fome doía-lhes a barriga mais do que conseguiam suportar. Lembravam-se do cheiro que ocupava o mundo quando uma delas era levada após o fogo ser aceso e temiam

(meu Deus, não, por favor, não, meu Deus)

que a carne que lhes era servida fosse humana.

Era impossível dormir ao longo da madrugada, quando o monstro do lábio rachado gritava insanamente no cômodo ao lado. As crianças fechavam os olhos, choramingando, tentando lembrar-se de suas mamães, papais e irmãozinhos, das brincadeiras e dos lindos dias na praça; ou dos amigos nos jogos de futebol.

Nico... – Rita apertou a mão do novo amigo.

O que foi? – abraçou a menina, encostando o queixo em sua cabeça.

Minha barriguinha dói...

Come um pouco...

Eu num quero! Eu quero mamãe...

Você tem que comer um pouco. – tirou do bolso um pedacinho de carne que guardava e entregou à menina. – Você tem que tá bem quando sua mamãe vier te buscar! Você tem que ser corajosa!

Nico... – ela o chamou novamente, aceitando a comida. – Você canta uma musiquinha pra mim? Canta? Os gritos me dão medo. Tô com muito medo.

ficou em silêncio por um momento, tentando se lembrar de alguma música que sua mamãe cantava. Acariciava os cabelos encaracolados de Júlia como se ela fosse sua irmãzinha – gostava de pensar que era, e que devia protegê-la. As recordações traziam lágrimas ao seu rosto, e Nícolas fazia o possível para que Rita não as notasse – tinha que parecer forte até

(se)

saírem dali. Após um tempo, lembrou-se da letra de uma música de ninar que lhe cantavam para que ele dormisse à tarde, deitado no sofá. Cantou-a baixinho, mas todos que lá estavam prestaram atenção em sua voz, que, por um momento, afastou-os daquele lugar, dos gritos... e do fogo.

Como... - Nícolas pigarreou. – Como pode o peixe vivo viver fora d'agua fria? Como poderei viver sem a tua, sem a tua, sem a tua companhia? Os pastores desta aldeia já me fazem zombaria... por me ver assim chorando... – lembrou-se de sua mamãe, o que o fez cantar o último verso baixo e hesitante. – Sem a tua ...

Mamãe...

Rita, por fim, adormeceu. Nícolas continuou a acariciar seus cabelos, molhando-os com suas lágrimas. Sobreviviam a mais um dia, mas quanto mais suportariam?

Quanto?

Alguém... alguém, por favor, venha nos salvar..., ele orava em seu íntimo.


Um Perverso Tom de VinhoOnde histórias criam vida. Descubra agora