Passivo sendo descoberto(?) - Parte 01

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Não viemos ao mundo com um manual, seja para nossos pais ou para nós mesmos. Eles nos criam da forma que acham que é correta e nós aprendemos a viver de verdade apenas quando erramos. E mais ou menos assim passamos adiante esse exemplo aos nossos filhos. Eu me casei e construí uma família nos moldes que meu pai construiu a sua, mas infelizmente não durou. Em nosso casamento tivemos momentos marcantes os quais não haverei de ter com outras pessoas, mas também tivemos discussões, a rotina que EU trouxe e com ela a dissolução lenta até o fim da minha história com Iraci.

Nunca perguntei como ela se sentia ou se havia alguém em sua vida ou o que ela acharia se eu viesse a ter outra pessoa. Nunca tive ciúmes dela, nem durante nem mesmo depois do casamento, mas acredito que era respeitado, bem como lhe retribui. Aos poucos fui perdendo qualquer interesse em sexo, logo não servi nem para ter um caso extraconjugal.

Nós nos separamos e mantivemos por uns seis meses a convivência em comum, já com os documentos assinados da separação judicial, só pelas crianças. Eu sempre a pensar que estava lhe atrasando a vida com meu marasmo me vi incentivado a sair de casa e dar sequência ao divórcio.

Após três meses que estava sozinho, eu me sentia sem vida devido ao meu comportamento apático e eis que me apaixono outra vez. Uma paixão diferente, quente, como jamais me aconteceu, ou melhor, como jamais me permitiria acontecer na minha forma antiquada de pensar.

Apaixonei-me por alguém do mesmo sexo. Um homem que não tem vergonha de sua orientação, mas que também não se rotula ou preocupa-se com a opinião alheia. Esse homem quer que eu mude alguns conceitos arraigados que tenho. Mas com a mesma paciência que ele tem comigo, eu tenho para lhe mostrar que nem todos pensamos da mesma forma, assim temos crescido lado a lado.

- Ira, a Rafa pegou meu celular, posso buscá-lo... alguém me ligou?

Pergunto tudo de uma vez enquanto penso que o excesso de informação pode deixar ela confusa.

- Tá, se quiser buscar, sem problemas. Ligou o seu amigo Braz. Acho que o cara nem olhou quem ligou para ele e disse: "oi amor, já ficou com saudade?".

- Por que você ligou para ele? – Pergunto muito sem jeito.

- Ah, é que tinham muitas ligações suas para o número dele ou dele para o seu número, apertei sem querer.

Só faltou eu dizer ufa.

Quando chego a casa dela, Ira já me espera séria, o que me dá um pouco de desconforto.

- Porque deu o telefone para a Rafa se ela estava de castigo?

- Ah, Ira, até me esqueci.

- Você está namorando aquele cara?

A sensação que passa por meu corpo é semelhante a que antecede um desmaio ou de ter levado um choque.

- Porque essa pergunta? – É só que consigo proferir.

- Sua vizinha, aquela que eu achava uma baita fofoqueira, me ligou para contar que te viu saindo só de toalha na rua e entrar no carro de um homem. Contou que tem um fortão que dorme lá na sua casa dia sim dia não.

Minha pressão deve ter aumentado ou baixado, fico tonto e com vergonha da minha ex. Não tenho a menor ideia de como explicar sobre o Braz.

- Ira, eu não sei o que dizer.

- Eu sinceramente não vou com a cara do sujeito. – Ela me olha dentro dos olhos com suas perolas negras parecendo muito triste. – Eu disse para a sua vizinha que cada um deve cuidar do seu quadrado, que você é um cara decente e bom pai. E cada um faz o que quer da sua vida. Não concorda, Túlio? Estou aqui, você sabe disso, não sabe?

Que vontade de abraçar essa mulher, mas não o faço. Sabia muito bem que ela ia captar rápido, mas não esperava sua defesa ao primeiro comentário. Jamais imaginava que ela teria uma reação tão tranquila. Baixo a cabeça e escuto seu riso.

- Não, nem pensa em baixar a cabeça, contador. Levanta isso aí que tem uma barra pela frente. – Ela me diz abrindo um sorrisão e acabo rindo com ela.

- Te amo mulher. – Abraço aquela diva negra que ainda me encanta e com quem compartilho meu segredo agora, ficando mais tranquilo.

Ela ainda ri quando desfazemos o abraço.

- Vida, vida. – Ela me chamava assim enquanto éramos casados. – É esquisito isso. Mas é sua vida. Viva bem ela.

Mais tarde enquanto dirijo para casa lembro-me da primeira pessoa que soube e o quanto calmamente aceitou os fatos, talvez seja a primeira e única pessoa com essa reação.

Tudo fica mais leve para carregar quando se divide a carga com alguém.

Ultimamente tenho tido dias com vários sabores, mais doces com meus filhos, mais picantes com Braz, mas azedos com Júnior e um amargo com Valentin, o jovem ex-marido de Rosa, clientes que aceitavam serem atendidos apenas por seu Camilo. O que sobrou para mim. Não conhecia o cara pessoalmente e conhecer foi um desprazer.

Valentin é designer de móveis, conhecido até mesmo em outros países com sua assinatura em móveis exclusivos. Um cara que poderia figurar numa capa de revista G devido aos atributos físicos, não que eu me interesse, mas é necessário eu comentar o quanto ele é bonito, sabe se vestir bem, é culto e arrogante ao extremo. O rapaz é alto, moreno claro com no máximo 35 anos, oriundo de família muitíssimo rica, dono de uma arrogância impar que fica difícil não conquistar a antipatia imediata de quem cruza seu caminho. Resumindo, um babaca excêntrico, que se comporta como um magnata do petróleo, quando é apenas sócio em uma loja finíssima de móveis planejados e decorações.

- Posso atender você em meu escritório? – Ele me pergunta e recusa-se a tirar as mãos dos bolsos para um cumprimento. – Minha sala é para convidados, mas já que minha empregada te fez entrar pela frente me acompanhe por aqui.

- Claro Valentin, como achar melhor.

Eu peço ao Todo Poderoso lá do céu, um mínimo de paciência.

Falo com um cara que parece viajar o tempo todo e me interrompe em dois momentos.

- Meus funcionários me tratam por senhor Valentin.

Eu simplesmente ignoro e prossigo falando com o senhor "Ramsés", informando-lhe que a empresa possui muitos débitos.

- Getúlio, esse é seu nome? – Ele me interrompe enquanto exerço de forma hercúlea, o dom da paciência. – Odeio gente que se trata por apelidos.

- Meu nome de batismo é Túlio. – Respondo seco e continuo demonstrar algumas pendências que a empresa possui, que na verdade são muitas, parcelamentos atrasados, INSS, FGTS e outros impostos estaduais e federais não pagos.

Ele me corta levantando a mão.

- Sua obrigação como contador não é nos avisar dessas pendências? Imagina quanto de juros e multas para eu regularizar tudo isso, estamos inadimplentes por causa de sua contabilidade, você é o contador e eu tenho que te dizer isso.

- Nossa contabilidade tem...

- Olha aqui, não me corte que eu não terminei. Devemos algum honorário? Se for isso, se deve a incompetência das pessoas que me cercam, nunca fico devendo nada a ninguém, eu tenho dinheiro e muito. Foi solicitado que todo e-mail seja enviado com cópia para o meu. E então?

Tendo confiança plena em minha equipe que isso foi feito, digo com toda a minha educação:

- Se vossa majestade olhar seus e-mails, vai ver que cumprimos nossa obrigação de avisar, quanto a juros e multa, não precisa de muito cérebro para saber que se eu deixar as minhas obrigações sem pagamento é algo que vou ter que arcar. Já a sua inadimplência deve-se ao fato de ser desorganizado, nós escrituramos sua empresa não somos o seu contas a pagar e que sou contador, sim sou, mas não achei meu CRC no lixo, então procure outra contabilidade. – Levanto e saio batendo a porta.

Ativo e Passivo - No sentido não contábil - ORIGINALOnde histórias criam vida. Descubra agora