No sentido não contábil - Parte 01

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2016, final de novembro...


— Três mil e quinhentos reais de multa? E quem vai pagar isso? — Não aguentei e alterei o tom da voz. — Eu avisei primeiro verbalmente, depois enviei uma circular que se houvesse mais uma declaração omitida que gerasse multa ia ratear entre os funcionários do setor. 

Esse é apenas um dia comum em um escritório de contabilidade, uma área ótima para se trabalhar só que estressante no nível máximo. Trabalhamos sob pressão devido às inúmeras obrigações, prazos de impostos e declarações ou multas que podem ocorrer por não cumprimento de alguma dessas informações não prestadas.

Hoje definitivamente não é meu dia, uma multa não é nada perto do que tenho pela frente, pois terei que me ajoelhar perante um cliente e implorar que não saia do nosso escritório, pedir desculpas pelo tratamento que este recebeu do Camilo Júnior filho do dono da contabilidade que gerencio.

O Braz é aquele cliente diferenciado que há quinze anos está conosco, o que não é nada fácil devido ao seu temperamento instável, fator este que afeta não apenas meus funcionários, mas a mim muito mais.

— Júnior, vem na minha sala, faz favor. — Desligo o ramal e vou tentar dialogar com o filho do dono deste escritório. Acho que minha gastrite já virou uma úlcera depois desse rapaz ter-me sido imposto como subordinado.

Ele entra e já me irrita de cara, sem uniforme, com fones de ouvido e boné.

— Que é? Vai começar cedo... não tenho nada haver com teus problemas pessoais, Túlio. Se vai me aborrecer por causa do Braz, estou saindo.

Eu respiro calmamente no meu limite.

— Júnior, por gentileza, senta.

Ele revira os olhos e desaba na cadeira a minha frente.

— Vai me encher o pacová com essa história de que há dezessete anos não tira férias e que na crise que a gente está não podemos perder cliente, que te mando a merda.

— Você tá me testando? Só pode. — Porque não soco a cara desse idiota? Porque nessa altura do campeonato ir para a rua por justa causa ou responder algum processo não é meu objetivo. — Pode me explicar o que houve? Sem gritar ou se exaltar como sempre você faz, só fala.

— Aquele filho da puta do Braz fica comprando coisas pra ele e pagando com a conta da empresa. Liguei pro camarada que me respondeu que a empresa é dele e faz o que bem entende. Aí eu respondi: "porra cara como é que fecho a merda do balancete?" Aí ele responde: "se vira, o contador é tu", aí eu perdi a cabeça e sutil, respondi:" então pega a tua empresa e mete..."

— Tá, já entendi. — Interrompo passando a mão na minha careca em sinal de desespero. — Não precisa continuar, já consegui me situar bem e agradeço se puder maneirar no linguajar sujo com nossos clientes. Se ele é gay ou hétero, isso não vem ao caso e se havia problema porque não me passou para que eu mesmo lidasse com ele. Ah meu Deus, chego a desanimar com uma coisa dessas. Agora tenho que ir ajeitar sua cagada.

— É pra isso que o meu pai lhe paga um alto salário, pra resolver problemas, agora os problemas são seus, se vira e boa sorte. — Dito isso ele sai da sala batendo a porta.

Eu me vi naquele momento em algum filme, Kill Bill talvez, onde um abuso desse desencadeia uma cena de violência banhada a sangue e no ímpeto, eu soco o arquivo de latão com toda minha raiva.

Procuro no celular o telefone do Braz, mas me falta coragem de ligar porque sei muito bem o que me aguarda. Vou para meu banheiro e olho-me no espelho pensando em ensaiar o que dizer a ele sem me humilhar tanto. Penso comigo "porque o desespero, Túlio"? Talvez porque ele tem só uma rede com seis supermercados e seus honorários cobrem a folha da nossa empresa que não é baixa. Olho-me com atenção novamente, eu não comecei ontem nesse ramo, então porque não me acalmo? Júnior é apenas um monte de merda, a coisa não é tão feia assim. De fato, qual meu medo? A resposta me vem aos lábios:

Ativo e Passivo - No sentido não contábil - ORIGINALOnde histórias criam vida. Descubra agora