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O INCIDENTE

23 de junho de 1990.

Feira de Santana, Bahia.


Uma das maiores tradições nordestinas é a festa de São João.

Em todos os lugares da Bahia, na noite da véspera, os homens arrumam a lenha nas portas das casas, as mães preparam canjica, milho cozido, pamonha, bolo de milho verde, aipim e puba; as crianças passam a noite tocando fogos de artifício – bombinha, traque, buscapé, chuvinha, bufa-de-véi, cobrinha – e os adultos, à beira da fogueira, assam milho, comem amendoim cozido e tomam licor de passas, jenipapo, cajá, ao som do tradicional forró de Luiz Gonzaga, Dominguinhos, ou outros mais modernos. Costuma-se também ir de vizinho em vizinho, perguntando: "São João passou por aqui?", como uma deixa para entrar e petiscar da mesa do outro. As casas ficam abertas, as pessoas nas portas, as ruas esfumaçadas e o som intermitente de bomba e outros fogos.

Para nós não era diferente. Como acontecia todos os anos, íamos para a casa do meu tio e passávamos os dias do recesso junino lá. Juntava-se, então, as seis crianças: eu, então com oito anos, minhas irmãs Mônica e Drica, que tinham na época dez e três anos, respectivamente, e meus primos, que de tão próximos mais podiam ser considerados irmãos também: Marquinhos, Danielle e Mirelle. Marquinhos tinha onze, Dani tinha nove e Mi, seis.

Lá em casa as crianças formavam uma escadinha. Minha tia Malu começou com Marquinhos. No ano seguinte minha mãe respondeu com a Mônica. No outro ano veio a Dani e no próximo eu nasci; Minha tia não ia ficar por baixo e pariu a Mirelle. Minha mãe deu uma parada de quatro anos e teve a Drica, que acabou ficando deslocada por ser mais jovem que a gente.

Nessa noite de São João nossos pais prepararam tudo na casa do meu tio, mas sempre saíamos pra fazer a ronda nas casas vizinhas. Estávamos na casa de um conhecido do meu tio, que ficava a poucos quarteirões da casa dele. Brincávamos com os meninos da rua enquanto os adultos conversavam na porta. Teve uma hora que meu tio ficou preocupado porque tinha deixado a casa aberta, e como já tinha se passado muito tempo que a gente tava lá, ele gritou a mim e ao Marquinhos, nos chamando:

- Meninos, a gente tá demorando demais aqui, o povo tá insistindo pra ficarmos mais. Vão vocês dois na frente e fiquem lá olhando a casa, que a gente já tá indo daqui a pouco. Marquinhos, de vez em quando olhe a fogueira pra ela não apagar. Fiquem lá que já, já nós vamos.

O garotinho Gustavo retrucou:

- Mas, tio, a gente tava soltando fogos ali com os meninos...

Antes que meu tio falasse alguma coisa, Marquinhos interrompeu:

- Tem nada não, Gu! A gente pega os nossos e fica soltando lá enquanto olha a fogueira – ele se virou pra o meu tio – a gente vai, sim, pai.

Meu primo me puxou pelo braço e saiu me arrastando. Quando a gente já estava mais afastado, ele sopra no meu ouvido:

- Fica quieto, besta. Vamo pra lá que a gente fica sozinho. É bom que a gente fode.



Eu e meu primo Marquinhos éramos muito, mas muito apegados. Brincávamos todos juntos, incluindo as meninas, mas como meu tio não as deixava ganhar a rua, íamos só eu e ele. Como tinha três anos a mais que eu, bem mais alto também, ele sempre me protegia, agindo como o verdadeiro irmão mais velho: não deixava os outros me baterem; nas brincadeiras mais perigosas, como o skate de papelão em ladeira, ia na frente; me dava dicas de como responder provocações, e de como bater forte no rosto dos caras pra não perder a briga. Dormíamos juntos, tomávamos banho juntos, ele lavava meu cabelo e ensinava a me vestir, e eu adorava tudo. Amava aquele pivete. Não conseguia negar nada que ele me propusesse.

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