Capítulo 57

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• Marília

Ali estava eu, acompanhada apenas do meu violão e do nervoso que não me deixava parar sentada. O banquinho à minha frente continuava aguardando que eu me aquietasse em cima dele, quase me censurando. Só quando percebi o laranja vivo no céu foi que me distraí por um momento. Era um pôr do sol maravilhoso e aquela parte da fazenda permitia que eu admirasse ele da melhor forma, uma leve brisa movimentando meus cabelos e as águas calmas do lago refletindo aquelas cores deslumbrantes. Respirei fundo, sentindo meu coração desacelerar um pouco, e me sentei para novamente afinar as cordas do violão. Provavelmente a quinta ou sexta vez que eu repetia aquele ritual, tudo tinha que estar perfeito.

Quando a noite começou a dominar o ambiente, eu senti a ansiedade tomando conta de mim rapidamente. Já fazia agora bem mais de meia hora que Juliano e meu irmão haviam subido, prometendo logo retornar com Henrique para que pudéssemos conversar. Foram poucos dias para planejar tudo e acabou sendo muito mais simples do que eu gostaria, o que me deixava ainda mais insegura e preocupada. Tinha uma percepção muito grande quanto se tratava do Henrique, era uma sintonia inexplicável, mas dessa vez eu não fazia a menor ideia de qual seria sua reação.

Depois de mais uma checagem geral, tudo parecia no lugar certo. Grandes tochas rústicas agora estavam acesas, iluminando fracamente ao redor de um pequeno banco com exatos dois lugares onde caberíamos eu e ele apenas e onde meu violão descansava, aguardando para fazer seu trabalho. Quando olhei para o céu, a lua e as estrelas também pareciam ter sido previamente organizadas e instruídas para dar o máximo de si, com um brilho que eu nunca havia presenciado. Talvez fosse um sinal de Deus, abençoando aquele momento.

Um barulho de vozes distante fez com que meu coração desse um salto. Chegou a hora. "Respira fundo, se acalma, vai dar tudo certo." Eu mentalizava essas palavras, sentindo minhas mãos tremerem muito. Peguei o violão desajeitadamente, tentando encaixa-lo em meus braços e me sentei aguardando pacientemente. O tronco robusto de um velho carvalho não permitia que eu visse ou fosse vista por ninguém, mas o volume das vozes aumentava a cada segundo e eu sabia que eles estavam se aproximando. Henrique estava confuso e preocupado, provavelmente pensava que estava prestes a cair em uma pegadinha dos meninos, e quando vi que eles estavam se afastando, deixando-o ali sem dar maiores explicações, decidi acabar com nosso sofrimento logo.

- Oi, Henrique. - eu disse com a voz rouca.

Mesmo sem conseguir me ver, percebi que ele se assustou ao reconhecer minha voz. Alguns segundos depois do choque, sua cabeça surgiu por detrás da única coisa que nos separava agora, aquela grande e velha árvore. Sua expressão era severa devido às rugas de intriga que se formavam em sua testa, mas se suavizou ao perceber que era realmente eu quem o aguardava ali, desarmada, indefesa, e principalmente tão assustada quanto ele.

Apesar do meu coração estar prestes a saltar do peito a qualquer momento, me afundei em seus olhos assim que encontraram os meus e senti uma paz que a muito não sentia. Eles tinham um poder quase hipnótico, me envolvendo calorosamente e tornando secundária qualquer outra banalidade que exigisse minha atenção. Me deixei levar por aquele mar cor de jabuticaba por algum tempo até perceber que ele dissera alguma coisa que eu fui incapaz de escutar.

- Desculpa, Henrique. O que você disse?

- Eu não esperava te ver aqui. - ele coçou a cabeça, confuso. - O que é tudo isso?

Eu respirei fundo, sentindo que não poderia estar mais preparada para aquele momento do que já estava.

- Eu queria te dizer algumas coisas. Muitas coisas na verdade. Você pode sentar aqui? - eu apontei para o lugar ao meu lado no banco.

Ele arregalou os olhos, mas fez como eu havia pedido. Eu me virei e o encarei com gentileza. Ele então abriu um sorriso tímido, me encorajando a continuar.

- A música está presente na minha vida há tanto tempo, foi ela que formou a pessoa que eu sou hoje, que me trouxe tudo que eu tenho, mas principalmente foi ela que uniu os nossos caminhos de uma forma linda, como tinha que ser. E é por isso que eu escolhi a música pra me ajudar a retomar esse caminho...

Ele assentiu sem tirar os olhos dos meus.

-...Eu escrevi tantas e tantas letras de música e sei que a gente se encaixa em muitas delas. Mas eu quero algo novo pras nossas vidas. Chega de impasse, do beija-flor indo embora pra não mais voltar. Eu quero que você conheça a Marília que eu sou hoje. Essa música não é minha, não é sua também, nossos amigos que deram voz pra essa letra linda na verdade, mas outro dia ouvindo no rádio eu descobri que ela é nossa. Eu mudei alguns detalhes pra ser mais nossa ainda. Escuta com carinho, por favor.

Eu encaixei o violão firme em meu colo e comecei a dedilhar as primeiras notas. Henrique permaneceu quieto e muito atento. Então timidamente comecei a cantar as palavras que eu vinha ensaiando arduamente na última semana:

"Você fala demais
Diz muitas besteiras da boca pra fora Mas sei que se arrepende
Por jogar o que não era lixo fora

A gente briga, se ignora
Pisa na bola
Sente saudade e chora
Diz que é de raiva pra não assumir que se adora

Eu sei que um grande amor não é fácil de se encontrar
Mais difícil ainda é deixar de gostar Se o clima tá pesado, não existe pecado que não se possa perdoar

Vai ver a gente não conhece o amor direito
Prazer, eu sou uma menina cheia de defeitos
Igualzinha àquela que você aprendeu a amar

Mesmo que o sol se apague e venha a lua te trazer de volta aos sonhos meus Pode passar mil anos, você vai me amar e eu vou ser pra sempre sua

Mesmo que o sol se apague e venha a lua te trazer de volta aos sonhos meus Pode passar mil anos, eu vou te amar E você vai ser pra sempre meu."

Eu terminei a canção sentindo as lágrimas escorrerem lentamente por meu rosto. Henrique mantinha uma expressão neutra e indecifrável, muito atento aos meus movimentos. Eu imaginava que ele já estaria me acompanhando nas lágrimas neste momento, mas talvez sua mágoa fosse maior do que eu pudesse prever. Eu desatei a falar tudo o que havia guardado dentro de mim.

- Henrique, eu sinto muito por tudo o que aconteceu entre nós. Por todos os desentendimentos, as palavras duras usadas para machucar, as desconfianças, tudo mesmo. Eu te amo, não tenho mais medo de dizer isso. Demorei muito para admitir pra mim mesma, você me conhece, eu sou teimosa, cabeça dura, e isso quase me custou você. Ou talvez tenha me custado uma vida com você. Mas eu te peço, eu te imploro, se você não corresponder mais a esse sentimento, não deixa a nossa amizade morrer. Eu prefiro ter só o seu carinho de amigo do que não te ter mais na minha vida, com isso eu não posso lidar. Eu sei que fiz muita coisa errada e te magoei, mas por favor não me tire a pessoa mais importante que entrou na minha vida.

Ele me encarou muito sério.

- Agora você pode falar. - eu soltei em um tom desesperado.

Ele começou a procurar algo em seu bolso ainda em um silêncio torturante. Eu já não estava entendendo mais nada.

- Você pode virar de costas, por favor? - foi a única coisa que ele disse, quase inaudível, quando finalmente encontrou o que procurava.

Eu obedeci, devastada com a sua indiferença a tudo o que eu achei que seria uma linda surpresa. E quando estava prestes a desabar de vez, senti suas mãos tocarem meus cabelos. Ele os colocou sobre meu ombro direito, tocando a pele ali exposta com a ponta dos dedos. Percebi meu corpo se arrepiando inteiro nesse momento e todos os meus sentidos se voltaram para aqueles movimentos. Fechei os olhos e senti o metal gelado contra meu colo, me fazendo arrepiar ainda mais. Henrique agora trabalhava cuidadosamente com o feixo, enquanto eu tentava identificar o que era aquilo. Apaupei o pingente delicado e imediatamente abri os olhos, em choque. Não podia ser. Eu o havia largado em um camarim qualquer.

Me virei em busca de uma explicação e então o vi mais perto do que esperava. Sua barba espessa agora estava gotejada em diversos pontos e não era capaz de esconder o pranto que rolava por seu rosto. Eu olhei para a jóia em meu pescoço apenas confirmando o que já sabia, o microfone se encontrava ali tão reluzente quanto no dia em que eu o tinha visto pela primeira vez. Senti duas mãos segurarem suavemente meu rosto e levantei o olhar, agora nos encontrávamos a poucos centímetros um do outro. Podia sentir seu hálito de menta disfarçando o cigarro, tão característico dele, meu cheiro preferido no mundo. Suspirei profundamente, sem conseguir deviar meus olhos de sua boca.

- Você guardou ele todo esse tempo...

Ele encostou sua testa na minha e sussurrou:

- Eu vou ser pra sempre seu.

Então nossas bocas se tocaram. Suavemente, lentamente, até ambos sentirem o que realmente estava acontecendo. Henrique abraçou minha cintura e nós finalmente nos beijamos com toda a paixão que havia dentro de nós.

Eu podia sentir que ele entregava seu coração a mim novamente com aquele beijo. E tudo que pude fazer foi entregar o meu em retorno. Suas mãos deslizaram pela lateral do meu corpo e então por meus braços, até se entrelaçarem com as minhas mãos. Ele suavizou os movimentos do beijo até que seus lábios apenas tocavam os meus sem se mexer. Permanecemos assim de olhos fechados por alguns segundos, até que ele me envolveu em seus braços, me escondendo naquele abraço só meu e dele, cheio de cuidado, cheio de entrega.

- Eu te amo tanto, Marília. - ele falou, enquanto me apertava contra seu corpo. - Eu não acredito ainda que você tá aqui. E que a gente tá se entendo. Eu acho que tô sonhando, tô com medo de acordar a qualquer momento e descobrir que você ainda tá com algum outro cara de nome esquisito.

Eu tive que rir da audácia. Dei um beliscão de leve em seu braço.

- Viu? Você tá é muito acordado. - eu falei, enquanto ele protestava fingindo sentir dor. - E seu último caso não tinha um nome muito normal também...

- É verdade. - ele riu, acariciando meu rosto. - Mas vamos deixar o passado lá no passado. Só o que me importa agora é o presente, você aqui comigo nessa surpresa maravilhosa. E o nosso futuro juntos.

- E você já tem planos pro nosso futuro? - eu envolvi seu pescoço entre meus braços.

- Muitos! - ele falou animado. - Começando por agora...

Henrique segurou minha mão e se abaixou, apoiando um único joelho no chão. Com a mão livre, retirou uma pequena caixa preta do bolso da bermuda. Ele a abriu, estendendo em minha direção um anel com uma linda pedra verde incrustada.

- Você não é a única que prepara surpresas, meu amor. - ele falou ao ver minha cara de abobalhada. - Marília Dias Mendonça, rainha da sofrência brasileira, dona do meu coração, amor da minha vida, você aceita ser oficialmente a minha namorada? - Henrique beijou minha mão enquanto olhava em meus olhos.

- Henrique, eu... - as lágrimas começaram a escorrer novamente, mas dessa vez inundando meu coração de uma alegria que eu nunca havia sentido antes. - Sim, é claro que sim!!! - eu pulei em seu pescoço, o abraçando, e caímos os dois no chão.

Nesse momento não nos importávamos se as roupas iam ficar sujas de terra, se nossos braços iriam se ralar nas pedras ou se a grama iria se agarrar em nossos cabelos, só sabíamos rir, rolando juntos de um lado para o outro. Henrique parou de repente por cima de mim, me observando enquanto eu ainda ria sem parar.

- O que foi, amor? - eu falei quando finalmente consegui recuperar o fôlego e conter o riso frouxo. 

- Eu não sabia que dava pra amar alguém tanto assim. Eu podia ficar te assistindo rir pro resto da vida e não me cansaria nem por um minuto.

Eu suspirei, dando-lhe um selinho carinhoso.

- É bom você não cansar mesmo, vai ter que me aguentar rindo muito agora que sou a pessoa mais feliz desse mundo, a namorada do Henrique. - eu acariciei sua barba - NA-MO-RA-DA. Que estranho, não sei quando vou me acostumar com isso.

- Vamos dar um jeito nisso. - ele falou, se levantando e me ajudando em seguida a fazer o mesmo.

Henrique segurou minha mão, enquanto tirava o anel da caixa. Então começou a coloca-lo delicadamente em meu dedo anelar direito.

- Marília, aceita esse anel como sinal do meu amor, respeito e confiança. Que mesmo na distância, você saiba que eu estou com você, pensando em você, olhando por você, e que você nunca duvide desse sentimento. Eu prometo que não vou te magoar ou te fazer sofrer outra vez, de hoje em diante minha missão é sempre te fazer cada dia mais e mais feliz, porque eu sei que só sou feliz quando estou com você. Faço essa promessa como seu namorado e eterno melhor amigo, e que esse anel seja o símbolo dessa promessa.

Ele beijou o anel quando terminou de desliza-lo por meu dedo e eu fiz o mesmo. Selamos nosso compromisso.

- É, acho que eu consigo me acostumar com isso. - eu sorri, admirando a pedra verde que reluzia.

Henrique bateu o pó da roupa e se sentou de lado no banco.

- Vem aqui, amor.

Eu me encaixei no meio de suas pernas, deitando meu corpo sobre seu peito. Ele abraçou minha cintura e apoiou o queixo em meu ombro, afundando o nariz em meu pescoço. Ficamos ali por algum tempo, admirando a lua e as estrelas enquanto a chama das tochas diminuia lentamente.

¤

Quando decidimos subir, encontramos todos reunidos na sala. Juliano e Mohana estavam deitados juntos confortavelmente no sofá, vendo televisão. João Gustavo e tio Edson estavam sentados à mesa,  conversando animadamente. Dona Maria acabara de entrar no cômodo e parou para nos observar assim que percebeu nossa chegada. Estávamos os dois com um sorriso de orelha a orelha, as mãos entrelaçadas como se fossem uma só, e quem olhasse podia ver que ali só existia amor.

- Família, eu e a Marília temos um comunicado. Nós estamos oficialmente juntos e agora é pra valer. - Henrique falou, erguendo nossos braços no ar e me dando um beijo estalado na bochecha.

Ninguém pareceu surpreso com a notícia, mas vieram nos cumprimentar com muita alegria.

- Finalmente, seus dois teimosos. Não aguentava mais ver os dois sofrendo separados. - Juliano agarrou um em casa braço e nos apertou contra si. - Meus maninhos!

- Minha filha, que notícia maravilhosa. - tio Edson me abraçou com força. - Você sempre fez parte dessa família, nada podia me fazer mais feliz do que ver meu filho com uma menina maravilhosa como você.

- Nós ficamos mesmo muito felizes com essa notícia, Marília. Meu filho é um menino incrível e merece ser feliz e eu sei que você é a única que consegue tirar esse sorriso bobo e apaixonado dele. - Dona Maria se aproximou, olhando para Henrique como se ele fosse um garotinho de cinco ano de idade.

- Obrigada a todos vocês, tudo que eu mais quero é fazer o Henrique feliz. Eu o amo e amo essa família maravilhosa! - eu falei emocionada.

- Acho que isso merece uma comemoração especial. - tio Edson correu para seu famoso armário de cachaças e voltou com a que ele sabia ser minha favorita. - Vamos comemorar do nosso jeito, né menina?

- É amor, acho que você já é mais da família do que eu mesmo. - Henrique falou rindo.

Dona Maria correu para buscar copinhos pra todo mundo.

- E sem querer me meter nem nada, mas vocês vão assumir esse relacionamento publicamente? - João perguntou.

Henrique me olhou de lado, pensativo.

- Não conversamos sobre isso ainda. - eu falei, tentando não pensar muito naquele assunto.

- Mas se a gente resolver assumir, acho que não vai ser problema nenhum. Nosso público ama a Marília. - Henrique segurou minha mão com segurança.

- Eu nunca vi tanta gente torcendo pra um casal ficar junto como o pessoal torce por esses dois. - Mohana soltou, rindo.

- É, quem sabe a gente não faz uma surpresa pra eles? - eu começava realmente a considerar a ideia.

Cada um já tinha sua dose de cachaça na mão. Até meu irmão entrou na brincadeira, se aproveitando da comemoração.

- Um brinde ao amor! - tio Edson levantou seu copo e todo mundo o seguiu.

Depoia de tomarmos nossas doses, Henrique me abraçou enquanto conversavamos animados com os outros. Era incrível a sensação de paz que me invadia naquele momento. Meu lugar sempre tinha sido ali, ao lado dele. Eu finalmente me senti completa.

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