24 - Um legado de penúria isento de dignidade, por favor

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Carolina, feliz em ouvir a porta do elevador se fechar, e ainda mais satisfeita pela ausência de César, deu-se conta de que era sua vez de partir. Pendurando os óculos no pescoço, resolveu apressar Daniel lhe perguntando:

— Mas o que foi?

— Bem, preciso me livrar de uma coisa. Só de precaução.

— Se livrar do quê?

Antes de responder, Daniel acionou o comando de voz de seu celular e lhe ordenou:

— Eagle, ligue para Leonardo. Atendimento: viva-voz.

Então, apontando para os óculos, pediu à Carolina que os devolvesse. E enquanto aguardava a ligação ser completada, disse para a colega:

— Deixa eu confirmar o que você viu.

— Toma.

— O símbolo está na caixa de papelão, certo?!

— Sim, na lateral.

Quando Daniel vestiu os óculos, Carolina perguntou:

— Consegue vê-lo?

— Tsc, consigo!

— É da Café com Leite, não é?!

— Sim. Mas não sei se esses caras pertencem ao grupo.

— Eles são do sindicato da sua lanchonete. Você não os conhece?

— Não. Na verdade, não conheço nenhum deles. Sou como um eleitor recusando os favores de um candidato à política: sempre fugindo de pragas.

— Os membros do sindicato são pessoas ruins?

— Bem... é mais uma escolha pessoal. Odeio fazer amizade com pau mandado metido a William Wallace. Muita pose para pouca coragem, e muito discurso para pouco conteúdo.

— Sei. Bem, mesmo que eles sejam da Café com Leite, qual é o problema? Por que você está tão agitado?

— Porque eu coloquei um cesto de taquara lá na cozinha. Estamos usando ele como cesto de lixo.

— E daí?

— Como “e daí”? A Café com Leite londrinense é toda dodói com a cultura artesanal indígena. Especialmente depois que os caingangues do Apucaraninha se converteram de artesãos para técnicos de T.I.

— Dodói? Oh, você está falando daquele argumento de que “o legado caingangue está em extinção, portanto é nosso dever preservá-lo”.

— Sim.

— Acho isso tão engraçado. Os caingangues não foram extintos. Simplesmente estudaram e se transformaram em bons profissionais. Por acaso o legado deles não continua na área de T.I?

— Sim. E na área alimentícia também! E eu aqui? Não conto?

Carolina apertou a bochecha de Daniel, bem humorada e risonha.

— Oh, tadinho! Caingangues também são ótimos office boys, ok?!

— Pff, enfim: para a Café com Leite, caingangues de verdade eram aqueles que migravam do Apucaraninha até Londrina, montando acampamentos em terrenos baldios e vendendo artesanato em esquinas de comércio.

— Ou seja: para eles, índio de verdade é sem-teto e não tem carteira assinada. Isso faz de você um poser, Daniel.

— Pois é. Se você tiver uma vida digna, não poderá ser chamado de índio. Essa é a métrica das organizações sociais brasileiras. Cambada de burgueses românticos, na minha opinião.

— Mas o que o cesto de taquara tem a ver com isso?

— Caingangues pararam de fabricar artesanato. Agora eles se preocupam com cloud drives, competição estrangeira e... milkshakes calóricos.

— Ora, quem diria: estou colaborando com o legado de vocês e nem sabia.

— Sim. Bem-vinda a bordo, ô cara pálida. E bem: como eles pararam com o artesanato, cestos de taquara iguais ao da nossa cozinha são considerados patrimônio cultural. Ou, pelo menos, são vistos dessa forma pela Café com Leite.

— Acha que eles ficarão zangados de ver um suposto patrimônio cultural indígena sendo usado como cesto de lixo?

— Claro que sim! Na verdade, vão entrar na justiça contra a lanchonete. Seu Osvaldo terá de pagar uma multa enorme!

— Mas você é o dono do cesto e é descendente de caingangue. Você deu consentimento para o uso do cesto. Isso não conta?

— Não. Já se esqueceu? Tenho vida digna, teto próprio e carteira assinada. Logo, do ponto de vista deles, já não sou índio. Meu consentimento não vale nada.

Daniel olhou para o celular, angustiado. A ligação não completava.

— Leonardo não atende. Eu mereço mesmo! Em vez de ficar perto do celular, ele deixa o aparelho lá na cozinha, gravando vídeo sozinho. Preciso correr até a lanchonete e esconder o cesto eu mesmo.

— Vai lá. Eu também precis...

Foi quando Marcelo chamou por Carolina, lá do seu balcão. Tapava a lateral do lábio com a mão, tentando impedir que sua voz vazasse para o microfone. Mostrando-lhe o headset, disse:

— Carlos está na linha. Quer falar com você. E pelo tom de voz, eu te aconselho a atender agora.

* * * *

Novo capítulo dia 25/06, as 22:00, horário de Brasília.

O vlog de Carolina e o feriado antecipado no calçadãoOnde histórias criam vida. Descubra agora