40 - Colocando os pingos nos i's

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Seu Paulo, caído com o rosto para baixo, perdera a consciência. Seu braço se dobrava ao lado das costelas, formando um L, enquanto seu boné de aba reta, lançado para trás, ficou tombado aos pés da cadeira, projetando a base da coroa para o teto. Sangue morno vertia de sua testa, onde se abrira um corte profundo de 3cm de largura. Escorria em filete até a sobrancelha, caldoso e salgado, empoçando-se no chão.

Fernanda se espremia contra a divisória. Abraçava a própria barriga com um dos braços, enquanto o outro era levado até seu rosto, cobrindo a boca com a mão. Seus olhos estavam vermelhos e lacrimosos, marejados pelo susto, encarando revezadamente Alice, Carolina e Seu Paulo.

Por um momento, ela seguiu sua educação católica. Clamou por uma intervenção divina, orando para que Deus, e não ela, fizesse alguma coisa. Isentou-se de providenciar os devidos cuidados ao ferido, limitando-se a simplesmente contemplá-lo, sem nem ao menos perceber que, com seu headset, já poderia ter chamado uma ambulância.

Contudo, também se perguntava quem se responsabilizaria por isto. Supunha que Alice, sendo a gerente de RH, um cargo mais propício à imunidades do que o cargo de promotora publicitária, poderia não apenas se livrar da culpa, como também empurrá-la para seu colo. Afinal, Seu Paulo estava caído em seu setor, e sangrando em sua central de vendas, não no escritório de Alice.

Além disso, mesmo diante deste horror, também pensava em como cumpriria a meta de vendas do próximo mês. Não acreditava que seus mimos trariam Seu Paulo de volta àquele prédio.

“E isso se Deus já não o tiver levado daqui para sempre. É como se Golias tivesse derrubado Davi, e não o contrário. Uma violência dessas só pode significar uma coisa: Jesus está voltando! É a sexta trombeta!”

Enquanto Fernanda se perdia nestes delírios de perseguição, imaginando prenúncios apocalípticos, Carolina, soltando-se da maçaneta, manteve-se a dois passos de distância de Alice. Lamentou o isolamento acústico do local, que impedira a turma da redação de ouvir a confusão

Não teve pena de Seu Paulo. Se ele pensava que poderia falar com os outros como quisesse, e fazer deles o que bem entendesse, presumindo que ninguém teria coragem de confrontá-lo, só porque usava um jargão de zueiro criminoso, então azar o dele. Sofreu as consequências dos seus atos. Encontrou alguém que lhe respondesse à altura.

Na verdade, para Carolina, que nem precisara tomar parte na pancada, saudoso corretivo à moda antiga, não havia satisfação melhor. Seu Paulo estava esticado no chão, abatido e humilhado, e sem necessidade de que ela assumisse a responsabilidade.

Aquilo era a própria imagem do prazer. Não poderia haver júbilo maior. E ela até poupara-se de futuras represálias, que geralmente eram protagonizadas por parentes e amigos de brasileiros barraqueiros. Era algo comum aos tipinhos incorrigíveis: tinham o apoio de pessoas igualmente sem valor.

Sim, o zueiro caído não era o problema.

O problema era Alice. Mais especificamente: os motivos pelos quais ela o agrediu. Motivos já insinuados na inesperada mudança de linguajar,  minutos antes.

Pouco interessada em prestar os primeiros socorros a Seu Paulo, e temendo muito mais a presença da gerente, Carolina disse:

— Alice, o que foi isso?

Ela, ainda de costas, com a cabeça voltada para o zueiro, olhando a poça de sangue ao redor de sua testa, respondeu:

— Isso se chama controle de pragas, Carolina. Se chama higienização social.

— ...

— Sabe, durante os três meses em que você esteve conosco, eu nunca me interessei por você. Achava que era mimada, oportunista e sem planos para o futuro. Pois, além de ser jovem, você é muito paparicada pelos universitários. Achava que toda essa adulação tinha subido a sua cabeça. Realmente pensei que você era só um rosto bonitinho, sem nada de especial a dizer. Um rosto bonitinho adorado por um monte de cuecas punheteiros.

O vlog de Carolina e o feriado antecipado no calçadãoOnde histórias criam vida. Descubra agora