46 - A ex-candidata à embaixada bolsonária

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A piada de Valéria, dita com tanta secura na frente de um idoso ensanguentado, foi um absurdo tão grande que acabou amenizando o ar da central. Tanto o humor inoportuno quanto a reação inabalada da jovem âncora reconfortaram o coração de Carolina. Era como se Valéria, por meio desta atitude, não visse motivo para pânico, mesmo diante de uma cena tão bárbara.

Porém, quando ela notou o sangue empoçado de Seu Paulo, demonstrou uma preocupação igual a de Renato, dizendo:

— É melhor movê-lo para um lugar limpo.

Renato, piscando atrás do Eagle Glass, sentindo o corpo de Cloara pressionando suas pulseiras frias contra a pele, disse:

— Não, deixa pra lá. Carol disse que ele quebrou um osso.

— Hmm, nossa. A queda foi tão grande assim?

— Não sei, mas os chutes do Dalborga provavelmente fizeram um bom estrago.

— ...

— E isso é estranho, porque eu não escutei nada lá da redação. Estou falando: essas divisórias à prova de som ainda vão abafar muitas coisas ruins.

— Chutes?

— Sim.

— Como assim chutes?

— Dalborga chutou o old man duas vezes.

— Renato, eu pensei que ele tinha tropeçado e caído. Quer dizer que não foi um acidente?

— Sinceridade?! Eu não sei. O que aconteceu aqui, marreco?

Carolina, recostada na escrivaninha, ajeitou a manga da camisa e moveu sua franja para longe dos olhos, dizendo:

— Alice sentou o tablet na cabeça do vagabundo, como o Dalborga diria.

— Que nada. Ele diria o filho da lula peidou pra muzenga. Mas por que ela fez isto?

— Olha, não que eu seja o centro do universo, mas... eu acho que Alice fez isto só pra me agradar.

— Sério? Pra quê? Talvez te levar pra cama?

— Não! Pra ser minha melhor amiga, ou algo assim.

— Ainda não vejo a diferença.

— Renato, você não sabe a diferença entre melhores amigas e amantes?

— Não. Desde quando há uma diferença?

— Desde sempre! A melhor amiga só fica na torcida, enquanto o amante faz o gol.

— Eu já dei goleada nas minhas melhores amigas e, mesmo assim, continuamos torcendo uns para os outros.

— No seu mundinho de metrossexual solteiro, você pode até misturar as duas coisas, como se fossem um sorvete italiano. Mas no meu mundo de jornalista atarefada, a arquibancada é reservada para as amigas, enquanto o gramado é reservado aos amantes.

— Então você deixará Alice na friendzone?

— Primeiro: como a friendzone é só para amigos, ela não se encaixa lá, porque não é minha amiga. Segundo: eu já disse que Alice não está atraída por mim. Ela fez isto porque... sei lá, porque me acha geneticamente perfeita.

Renato deu risada, balançando a cabeça de Cloara para cima e para baixo, sem querer.

— Quanto mais você fala, mais se complica, marreco!

— Como assim?

— Geneticamente perfeita? Esse é o jeito biológico de dizer gostosa.

— Besta! Acontece que Alice é uma bolsonária apaixonada pela eugenia. Ou, pelo menos, eu acho que ela é, porque fica falando coisas como acéfalo, glorioso sul e nordeste miserável.

Valéria, olhando para Seu Paulo enquanto ouvia os dois falarem, fechou os olhos e cruzou os braços, como se lembrasse de algo ruim. Suspirando incomodada, disse à Carolina:

— Sim, ela é bolsonária. Já tentou me recrutar para o grupo, antes de você trabalhar aqui.

— Mesmo?

— Bem, ela me adicionou no Bicadas e tentou conversar comigo várias vezes, lá no chat. De primeira, eu dava atenção, só por educação. Mas com o tempo, Alice começou a falar coisas estranhas.

— Coisas do tipo você é um exemplo do que o Brasil precisa?

— Não apenas isso, como também você seria o modelo perfeito para criarmos uma geração homogênea e unificada, ou qualquer coisa assim.

— Hmm...

Carolina começou a reparar na aparência de Valéria.

Cabelos ruivos e lisos, que pendiam três dedos abaixo dos ombros, com longas franjas laterais emoldurando o rosto. Olhos azuis e amendoados, exibindo o brilho competente e esperto dos seus 25 anos. Blazer social preto, abotoado até a metade da aba frontal, com camisa feminina branca de gola fechada, saia escura de poliéster liso e meia-calça fio.

Era a personificação do que se costumara chamar raríssima otome de olhos azuis, expressão atribuída a brasileiras jovens, brancas, de olhos claros e cabelos ruivos ou loiros. Um jargão importado do Japão e disseminado entre os amantes de desenhos animados japoneses, e que agora, em 2060, incorporava-se ao vocabulário dos militantes pró-eugenia, eternos insatisfeitos com a miscigenação do país.

Carolina, olhando alternadamente a pele, a pupila e o cabelo de Valéria, pensou:

“As preferências bolsonárias orgulhariam Monteiro Lobato.”

Enquanto isso, Fernanda acordava do seu estupor, finalmente se levantando do chão. Amparando-se na cadeira, começou a cuidar do seu visual, limpando os joelhos e desfazendo as dobras da baby look.

Então, ao perceber que perdera seu cliente, e que estava mais longe de cumprir a meta de vendas de maio, lembrou-se das últimas palavras de Alice, momentos antes de ela sair.

— Como assim ela vai rasgar o contrato com a Narcisa & Brizola?

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Novo capítulo dia 16/08, as 00:00, horário de Brasília.

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Compilação dos capítulos 17 a 33 disponível gratuita no Smashwords e Itunes. Acesse a página do meu perfil para conferir os links.

O vlog de Carolina e o feriado antecipado no calçadãoOnde histórias criam vida. Descubra agora