37 - Dalborga

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Dalborga continuava nervoso. Embora a redação tivesse voltado ao normal, ele não parava de pensar nos desaforos lançados à Fernanda, nem na ousadia de Seu Paulo em chamá-la de potranca, piriguete e novinha, sendo este último, embora menos chocante, igualmente injurioso.

Quando Alice e Carolina se retiraram, sentiu que ele deveria se confrontar com o zueiro, não a gerente de RH. Acreditava que uma presença masculina, dotada de ar intimidatório, surtiria maior efeito. Especialmente se tratando de alguém tão versado no que se costumava chamar vocabulário proibidão. Um idoso grosseiro e indecente, cujo orgulho pirracento, natural à idade avançada, só pioraria sua recepção à críticas.

De fato: Alice prometeu remediar a situação. Assumiu a responsabilidade para si. E Dalborga, moderado demais para se intrometer nos assuntos dos outros, preferia deixá-la cuidar de tudo sozinha, livre de seu amparo indulgente, evitando, desta forma, subestimar sua capacidade para resolver problemas.

Porém, continuava incomodado. Mesmo tendo as mãos atadas pela própria educação, ainda queimava em rancor, indignado e reprimido, sedento por aplicar uma justa e violenta reparação.

Em seus 20 anos como repórter policial, somados aos 45 anos de vida, já testemunhara e noticiara diversos assaltos, assassinatos e abusos sexuais, cujos infratores, mesmo sendo capturados, escapavam em liberdade. Fosse por causa da menor idade, da superlotação nas cadeias, da influência de suas panelinhas políticas ou do poder econômico de suas famílias, a justiça devolvia esses infratores à sociedade, sem supervisão ou restrições, só para serem noticiados novamente na semana seguinte, cometendo outros delitos.

Para Dalborga, ficar falando sobre os mesmos infratores em seu jornal, semana após semana, obrigava-o a constatar a moleza do sistema penal brasileiro, a frouxidão do ministério da justiça e a completa rendição dos direitos humanos as famílias dos condenados. Defeitos estes que, em sua opinião, abandonavam o cidadão honesto à própria sorte, tornando-o vulnerável aos criminosos.

Após noticiar tantas injustiças e tragédias familiares, ao longo de toda sua carreira, já perdera a paciência com as malandragens dos brasileiros. Não acreditava em medidas socioeducativas, não respeitava os defensores da população carcerária e era, sobretudo, a favor da justiça com as próprias mãos.

Se precisasse escoltar um criminoso ao seu destino final, tendo de escolher entre uma cadeira de escola e uma cadeira elétrica, escolheria a segunda opção. Afinal, em sua cabeça, bandido bom era bandido morto.

Movido por esta descrença na segurança pública, e tendo a certeza de que os indivíduos folgados deste país continuariam a se proliferar, certos de que jamais seriam punidos, odiou ainda mais Seu Paulo. Não queria que o zueiro se tornasse outro exemplo de impunidade. Ainda mais ali, na Landschaft, seu ambiente de trabalho.

Em cima da escrivaninha, havia uma caneca preta de 300 ml, que estava ao alcance de sua mão direita. Pegando em sua alça, levou-a consigo até a cafeteira automática, servindo-se de 100 ml de café puro.

Então, olhando para a janela, tentou diminuir seu nervosismo. Ainda se recusava a comprar aquela briga, não querendo se intrometer numa coisa que, supunha, era assunto dos outros, não seu. Manteve o foco no trabalho, lembrando-se de que ainda não editara as notícias policiais daquela sexta, que deveriam ser apresentadas dali duas horas, no horário do almoço.

Voltando-se para Renato, tomou um gole de café quente e amargo, dizendo:

— Se eu mandasse nesse país, botaria aquela múmia num paredão, tiraria suas roupas e fuzilaria suas costas com um rifle de paintball. E ainda cobraria seus netos pelas balas. Eu tô certo ou tô errado?

Renato apenas sorriu, balançando a cabeça em sinal afirmativo. Olhava o tempo todo para o monitor widescreen, sem fazer contato visual com o âncora.

Dalborga, sentindo necessidade de uma aprovação mais expressiva do que esta, continuou:

— Quando eu falo isso, eu sou louco? Eu pareço louco?

— Não.

— Claro que não pareço louco! Claro que não! Como é que pode esse vagabundo, esse língua-de-esgoto, falar para uma mulher que ela é potranca, que ela é piriguete e que ela fica de quatro para os seus chegados??

— Não tenho certeza, mas acho que ele estudou em escola pública.

— O que isso tem a ver?

— No tempo dele, os adolescentes não eram supervisionados pelos pais. Por isso, os professores desistiram de lhes dar educação, porque sempre que tentavam repreendê-los, os alunos os ameaçavam de morte. Os diretores e orientadores também ficavam de braços cruzados, porque tinham medo das ameaças. Tanto as salas de aula quanto os pátios dos colégios se tornaram verdadeiras faculdades de traficantes, provocadores de brigas e princesas do baile funk. E o resultado foi: em pleno ano 2060, temos idosos insuportáveis, grosseiros, ignorantes e vaidosos, iguais ao Seu Paulo.

— Para mim, a culpa é do judiciário. Muitos perdões para poucos inocentes. Sem mencionar a má infraestrutura da nossa gloriosa polícia londrinense. Poucas balas para muitos bandidos. Mas eu te digo uma coisa: esse Seu Paulo ainda vai peidar pra muzenga. Seja num leito de hospital, seja na esquina da Leste-Oeste.

— Leste-Oeste?

— Enfeitado como está, ele só pode estar querendo dar a bunda na avenida. É um prostituto capivara sem noção do ridículo!

Renato voltou a se debruçar sobre a mesa, rindo até chorar. Para ele, o dia não estaria completo sem ouvir os resmungos de Dalborga.

Contudo, reconhecia: não gostou de ouvi-lo dizer gloriosa polícia londrinense. Falando desse jeito, Dalborga expressava um orgulho regional que, em verdade, nem o londrinense e nem o brasileiro de qualquer região estava habilitado a ostentar.

Ainda faltava muita maturidade para fazer isto de maneira respeitosa e saudável, sem gerar ressentimentos ou discórdias, e sem desmerecer as qualidades das outras regiões. Um comportamento que, para Renato, ainda era inalcançável, uma vez que, até então, o brasileiro era competitivo, apaixonado, impulsivo e, portanto, sem moderação para alcançá-lo.

Mas tirando isto, Renato aprovava o resto da opinião de Dalborga.

E enquanto ambos conversavam sobre a ineficácia das medidas socioeducativas do sistema penal, César, terminando de reler a mensagem de Marcelo, levantou-se e seguiu para a porta do corredor. Pressionando o dedo contra o leitor biométrico, destrancou a trava eletrônica e virou a maçaneta, saindo da redação.

Foi observado o tempo todo pela editora chefe, que sentava-se na terceira e última escrivaninha, ao lado de Dalborga, atendendo pelo nome de Valéria Duffato.

Estava irritada com a retirada de César. Perguntava-se por que, naquela sexta, ele estava se dirigindo pela segunda vez ao elevador, sendo que, em dias normais, ele não tinha assuntos a resolver no 1° andar, nem no térreo.

Além disso, também se perguntava: por que ele estava verificando seu celular com tanta frequência, e com tanta ansiedade?

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Novo capítulo dia 26/07, as 22:00, horáro de Brasília.

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Compilação dos capítulos 17 a 33 disponível gratuita no Smashwords e Itunes. Acesse a página do meu perfil para conferir os links.

O vlog de Carolina e o feriado antecipado no calçadãoOnde histórias criam vida. Descubra agora