Carolina, sem saber se Dalborga falara com ela ou com Alice, resolveu ficar quieta. Contentou-se em cruzar os braços e se encostar na divisória, ficando parada ao lado da porta, cansada e emburrada, de testa franzida e peito em chamas.
Espiou Fernanda pelo canto dos olhos, sentindo um pouco de alívio ao vê-la junto de Cloara, apesar de, no fundo, ainda guardar-lhe algum rancor, já que envolvera seu vlog na oferta a Seu Paulo.
Alice, por sua vez, ficou ao lado de Dalborga, acompanhando-o em sua contemplação ao ferido. Embora estivesse mordida por não estar a sós com Carolina, também estava feliz em ver um outro adulto no local.
Mesmo tendo motivos para não se arrepender do que fizera, ou para não temer o peso da lei, reconhecia: alguém precisava tomar uma providência quanto aquilo. Fosse chamar uma ambulância, fosse chamar o lixeiro, fosse qualquer outra coisa. E tinha de ser alguém que, de preferência, não fosse ela.
Tentando amenizar o ar da central, que ficara pesado após o choro de Fernanda, disse a Dalborga em tom amistoso:
— Se ele estiver no colo do capeta, nada mais amável de nossa parte. Não sou advogada do diabo, mas abro aqui uma exceção: acho que o chifrudo também merece seus mascotes.
— Bem, sendo esse daí o seu novo mascote, tanto melhor. Pois já dizia uma sábia viúva ao seu vizinho pança de jabá: todas as coisas se parecem com seus donos.
— Ele? Parecido com o diabo? Seria no sentido de ser um marginal, e de também viver na merda?
— Não. No sentido de corromper o nosso glorioso Estado do Paraná e, ainda assim, ser adorado por uma seita de jovens vagabundos. Porque não basta nossos adolescentes serem otários: eles também gostam de sentar no croquete dos malandros zueiros. Gostam de se enroscar em sua lábia bandida.
— Ou de copiar seu comportamento tosco, achando que, deste jeito, serão a alma da festa.
— Alma da festa? Não. É mais para algazarra do que para criar um ambiente melhor. Pois brasileiro gosta de desordem, não de bem coletivo. Em vez de trabalhar, quer bagunçar. Em vez de estudar, quer farrear. E em vez de fazer hora extra, quer se embebedar nos barzinhos da vida, só pra ganhar uma cirrose. Isso é que me deixa puto da cara!
Dalborga, notando o isolamento de Carolina, tentou incluí-la na conversa, dizendo:
— Que foi, Carolsinha? Tá mais quieta do que defunto em velório.
— Só quero ver no que vai dar tudo isto, pra garantir que não precisarão de mim.
— Tá assustada com a cena?
— Não. Eu já vi coisa pior no PAM, quando a torcida do Londrina brigou com a do coxa-branca.
— Sei. Durante aquele jogo roubado do campeonato estadual. A arbitragem paranaense não se emenda mesmo. Mas não tá com pena desse vagabundo aqui, né?!
— Na verdade, estou sim.
— Como é? Repete, por favor.
— Estou com pena dele.
— Será que eu tô louco? Isso é brincadeira sua?
— Não, estou falando sério. Lamento ele não ter quebrado também as costelas. O golpe na testa, por si só, não compensa meu nervosismo.
Achando a maior graça, Dalborga jogou a cabeça para trás, gargalhando alto e vibrante. Recuperando o fôlego, disse bem humorado à Carolina, dando-lhe tapinhas no ombro:
— Sacanagem, hein?! Assim você me assusta, menina. Pensei que tava me tirando pra otário. Parecia ladainha sobre direitos humanos.
— Não sou padre para perdoar os pecados daqueles que voluntariamente fazem o mal. Na verdade, sou fã do clássico Direitos humanos para humanos direitos. Deveria ser liberado para a TV aberta, em vez de ter sua exibição proibida.
— Liberar um filme em que os acusados de crimes hediondos são mutilados, desossados e servidos fritos aos sem-teto? Só em seus sonhos, Carolsinha. Somos governados por um bando de sociólogos merdinhas, pós-graduados em boquete criminal. Verdadeiros amantes do Estatuto Penitenciário. Eles nunca liberariam um filme desse tipo pra TV.
— São amantes do Estatuto Penitenciário e dos motéis em beira de estrada. Porque soylent green não pode ser exibido em horário nobre, mas fornicação e adultério podem.
— É a América das oportunidades bandidas, ô menina. É assim desde os tempos dos portugueses. E de lá pra cá, não mudou nada. Repito: não mudou nada! É povo vivendo numa ignorância desgraçada, é dono de empresa abusando do trabalho dos outros, é covarde corrupto travestido de líder político. É uma coisa, sabe?! É... é... é... e é isso aí, tenho dito!
Apontando para Seu Paulo, que não se mexera durante todo esse tempo, embora estivesse respirando, continuou:
— Não basta eu ser contribuinte: também preciso ser banheiro público. Ficam me obrigando a conviver com esse tipo de merda. Quem de vocês bateu nele, afinal?
Alice ergueu a mão, exibindo o tablet com um sorriso orgulhoso, toda animada e cheia de si, como se assumisse a autoria de uma obra de arte.
— Aqui! Culpada!
— Seu serviço é mais ligeiro do que fast-food, ô cozinheira de feridas. Veja isso: um traumatismo craniano no capricho. Amo muito tudo isso. Nem precisei descer o porrete eu mesmo.
— Você teria que pegar uma senha. Carolina já estava na fila.
— A Carolsinha? Por quê?
— Porque ele mandou umas mensagens... excitantes pra ela.
— Excitantes? No sentido pornográfico?
— Nem tanto. Eu diria no sentido sadomasoquista. Do tipo que aflige o espírito, não o corpo. Não é, Carol?!
Carolina deu de ombros, resmungando um pff impaciente. Estava seca e incomodada, odiando a intimidade com que Alice lhe dirigia a palavra.
Já Dalborga, querendo se informar melhor sobre esse assédio, ficando até enciumado por Carolina receber mensagens supostamente picantes, perguntou à vlogueira:
— Que mensagens são essas, ô garota? Do que ela está falando?
— Nada. É besteira.
— Não, me mostra. Eu quero ver!
— Esquece, Seu Dalborga. Não quero falar nisto. Pra mim, esse assunto já deu o que tinha pra dar.
Carolina se endireitou, contrariada com a insistência do âncora, já se preparando para voltar à redação. Não estava gostando da autoridade dele, nem da ousadia em se meter nos assuntos privados dos outros. Do nada, transformara a conversa num interrogatório.
Alice, vendo a vlogueira encurralada, e ciente de que, na verdade, foi ela quem provocara o inoportuno, tentou livrar Carolina disso, pensando que, desta forma, ganharia seu afeto.
Pegando no pulso de Dalborga, disse:
— Ele falou que Carolina era azeda demais para ser chupada. Mas tudo bem: eu já o coloquei em seu lug...
— ELE FALOU O QUÊ?
— ...
Dalborga, puxando seu braço para trás, soltando-se de Alice com um movimento truculento, deu um passo adiante e parou ao lado do zueiro, encostando o bico do sapato em sua orelha.
Cloara, voltando à realidade, ficou olhando a atitude de Dalborga, quieta e imóvel. Enquanto mantinha Fernanda sob seu afago, escutou o âncora perguntar à Carolina, enraivado:
— É VERDADE?
Carolina, que estava prestes a se retirar, foi surpreendida por esta fúria. Meio intimidada, mas também se esforçando para manter a pose, limitou-se a balançar a cabeça, confirmando a informação. Então, de lábios entreabertos, ficou onde estava, atentando ao que se seguiria. Retraiu-se em ansiedade, sentindo a garganta apertar.
Dalborga cutucou a cabeça do desfalecido, estreitando os olhos e arreganhando os dentes, revoltando-se, de uma vez só, com as falhas do sistema penal, com a indulgência dos direitos humanos, com as impunidades praticadas no judiciário e com o riso zombeteiro dos brasileiros grosseirões, expressão máxima da vagabundagem e safadeza humana.
Disposto a ações desmedidas, berrou alucinado:
— GOSTA DE XINGAR MULHER PELA INTERNET, Ô MALANDRAGEM? GOSTA DE FODER COM O DIA DELAS? POIS AGORA VOU TE MOSTRAR COM QUANTOS PÉS SE FAZ UM BAGAÇO DE LARANJA!
Usando o calcanhar, desferiu um chute certeiro contra o tronco de Seu Paulo, acertando uma pancada letal e pesada, equivalente ao impacto de um tijolo cozido. A cabeça do zueiro moveu-se para o lado, molhando-se ainda mais no próprio sangue empoçado.
Não satisfeito, Dalborga desferiu um outro chute, no mesmo lugar e com a mesma força, desta fez quebrando-lhe uma costela. Então caminhou três passos em direção ao elevador dos clientes, de pernas trêmulas e dedos rijos, espalmando a mão para o teto, bradando de olhos fechados:
— XÔ, SATANÁS! XÔ DEMÔNIO! SAI DO MEU CORPO, GRAMUNHÃO!
Alice se afastou para junto da porta, sentindo-se menos feliz com a presença de Dalborga. Tentou ficar mais próxima da vlogueira, enquanto esperava o âncora voltar a si.
Carolina, de olhos fixos no corpo de Seu Paulo, certa de que ouvira um estalo seco no instante em que o chute o atingira, encolheu-se na divisória e puxou sua camisa para mais junto do corpo, sentindo o pulso latejar. Esforçando-se para manter o controle, ficara espantada e de cabelos eriçados, incapaz de decidir se, agora, fora vingada.
Fernanda, ainda escondendo o rosto no peito de Cloara, e apenas se preocupando em orar uma sucessão de Ave Marias, viu-se outra vez na central de vendas, após ouvir os brados de Dalborga. Sob a menção do nome Satanás, o algoz católico, agarrou-se ainda mais à Cloara, gemendo:
— ME TIRA DAQUI, PELO AMOR DE DEUS! QUERO IR EMBORA!
Cloara, escutando a lamúria da colega, e tendo testemunhado aquela violência, viu-se envolvida numa situação de dor, angústia e tragédia. Muito diferente da alegria, descontração e segurança oferecidos pelos seus ambientes de classe média alta.
Sob este choque de valores, não conseguiu resistir: desmaiou sobre os ombros de Fernanda.
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Novo capítulo dia 09/08, as 22:00, horáro de Brasília.
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Compilação dos capítulos 17 a 33 disponível gratuita no Smashwords e Itunes. Acesse a página do meu perfil para conferir os links.
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O vlog de Carolina e o feriado antecipado no calçadão
HumorQuando Carolina se tornou vlogueira, ela ainda acreditava no poder da honestidade. Achava que isto sempre falaria mais alto, independente da situação. Porém, ela acabou subestimando o maior vilão deste país: a agressividade da opinião pública brasil...