30 - Ucraniano abrasileirado

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O e-mail dizia:

Cara Sr.ª Alice

Nós, da Narcisa & Brizola, somos gratos pelos serviços prestados ao nosso setor publicitário. Somos especialmente gratos pelo empenho de sua funcionária, Carolina Godoy de Vilanova, em divulgar nossa marca em seu programa O Vlog de Carolina. Seu profissionalismo, diligência e carisma nos possibilitaram um trabalho conjunto positivo e ordeiro.

Porém, nossa política se baseia no respeito à ética e à moral, com ênfase na responsabilidade social e transparência com nossos clientes, funcionários e fornecedores. Não nos limitamos a oferecer o melhor produto, ou a gerar novos empregos: também nos preocupamos em preservar os valores de nosso país. Principalmente aqueles que nos distinguem como uma nação multicultural.

Tendo em vista o discurso da mencionada funcionária nesta última segunda-feira, notamos a incompatibilidade entre o conteúdo de suas mensagens e os valores defendidos em nossa política. Como tal, lamentamos informar que, muito embora respeitemos a opinião da Srta. Vilanova, não poderemos continuar com nossa relação profissional.

Agradecemos novamente pelos esforços dedicados a nossa marca, desejando-lhes boa sorte em seu ousado trajeto empresarial.

Atenciosamente,

José Bonifácio Chateaubriand, do setor londrinense de comunicação publicitária.

Carolina releu o último parágrafo. Ficou incomodada com o uso de ousado antes de trajeto empresarial. Não parecia ser um elogio honesto.

Ao final da leitura, após reconsiderar o contexto da mensagem, disse à Alice:

— A Narcisa e Brizola tem um setor de multitarefas. Além de cuidar da publicidade, também escreve comédia zombeteira.

— Como assim?

— Eles não tinham motivo para nos considerar ousados. Eu apenas dedicava 1 minuto do meu vlog pra falar sobre as promoções da semana. Não tem ousadia ou inovação nisso.

— Foi só um elogio educado. Uma formalidade entre profissionais. Onde está a comédia nisso?

— Está no duplo sentido da frase. Eu acho que, no fundo, eles queriam dizer “Boa sorte com esse seu jeito preconceituoso de ser. No mundo dos negócios, isso é completamente inviável. Mas não vamos mentir: é ousado de sua parte. O pior tipo de ousadia, sim. Mas ainda assim, ousado”. É como se tirassem sarro da nossa cara.

— Jeito preconceituoso?

— É o que todos pensam, não é?! O artigo da Seja não me deixa mentir.

— Acho que você está sendo neurótica.

— E eu acho que você está sendo conivente. Quer um conselho? Nunca duvide das sacanagens de um BR.

— Você fala assim, mas se esquece de que também é uma BR.

— Sou sim. Nasci e cresci rodeada de outros BR's. Acompanhei de perto sua paixão assassina pelo futebol, suas piadas homofóbicas ditas em cadeia nacional e sua exibição de bundas femininas em horário nobre. Então acredite: estou habilitada a falar no assunto. Tanto quanto você estaria, se não achasse que isto é síndrome de vira-lata.

Carolina sentia-se à vontade nesta conversa. Para ela, isto não passava de um diálogo saudável entre colegas de trabalho. Daniel lhe dava liberdade para falar o que quisesse, portanto ela tinha se habituado a discordar normalmente das pessoas, sempre que julgasse apropriado, sem medo de desagradar ou ofender.

Já Alice ficou confusa. Era como se Carolina estivesse a confrontando. Como gerente, nunca fora normal ser contrariada por uma subordinada. Ainda mais quando sua assistente, uma estagiária carente de um modelo feminino de sucesso, só sabia concordar com o que dizia, elogiando cada uma de suas atitudes.

Não entendendo o porquê de Carolina ser, em suas palavras, tão rebelde, concluiu o mesmo que todos os gerentes londrinenses costumavam concluir, quando se deparavam com um jovem funcionário opinador: tratava-se de uma garota insubordinada que ainda tinha muito a aprender.

Logo, num gesto de pretensa condescendência maternal, como se ela precisasse ser, entre as duas, a adulta da discussão, resolveu perdoá-la pelo que considerou ser um desaforo à sua autoridade, dizendo aos risos:

— Acho que entendo o porquê de terem dito ousado. Mas como percebeu, a Narcisa e Brizola não continuará a divulgar conosco. Por isso eu te perguntei sobre suas economias. Sei que a loja era sua maior patrocinadora. Imagino que seu dinheiro lhe fará falta.

— Bem, fará falta, mas nem por isso ficarei na miséria. Não gasto tanto assim, Alice.

— Mas você não é beneficiária daquele projeto da COHAB? Aquele de revitalização de bairros antigos?

— Sim, eu tenho que pagar o financiamento da minha casa própria na Vila Nova. Mas as mensalidades são pequenas. Consigo pagar só com o patrocínio do Seu Osvaldo.

Foi o que Carolina disse, embora não soubesse se ainda estava empregada na Landschaft. Mesmo Alice tendo lhe esclarecido o assunto das economias, não estava convencida, ou mesmo disposta a se convencer, de que a ameaça de demissão havia desaparecido.

Alice, por sua vez, estava surpresa ao ouvir o nome Vila Nova.

— Jura que seu sobrenome é igual ao do seu bairro?

— Sim. Você não sabia?

— Não. Nunca reparei.

— Que estranho. Antes de começar a trabalhar aqui, vocês me pediram pra preencher um formulário com todos os meus dados pessoais.

— É minha assistente quem cuida disso. Mas que coincidência engraçada!

— Não é exatamente uma coincidência. Quando meu vô imigrou da Ucrânia pra Londrina, ele quis adotar um sobrenome brasileiro, porque achou que, desta forma, se enturmaria melhor. E como ele tinha comprado uma casa na Vila Nova, acabou escolhendo o nome do bairro.

— Entendi. E quem diria: seu vô é ucraniano. Isso explica seus olhos verdes.

— É. Bem... também explica outras coisas.

— E por que ele imigrou pra cá?

— Pra fugir da guerra civil. Na época, o presidente ucraniano tinha se recusado a entrar na União Europeia, porque preferia se aproximar da Rússia. Isso deu na maior merda. Protestos, quebra-quebra, perseguição policial. Os ucranianos não estavam satisfeitos com essa decisão. E como meu vô não estava gostando nada disso, acabou se mudando pra cá.

— Que sorte ele ter escolhido vir para nossa cidade. Caso contrário, você não estaria aqui conosco.

— Bem, ele era pianista e já tinha participado do festival de música de Londrina. Ele tinha amizade com os organizadores do evento, então... é, ele teria decidido vir pra cá de qualquer jeito.

— E quando foi isso?

— Em 2014. Foi quando a crise estourou de verdade na Ucrânia.

— Entendo. Que história interessante a da sua família.

— Você acha? Obrigada.

A porta do escritório voltou a se abrir. Desta vez era Fernanda, a promotora de publicidade. Segurando a maçaneta, apontou para Carolina e disse:

— Precisamos conversar, Carol. E muito sério.

* * * *

Novo capítulo dia 09/07, as 22:00, horário de Brasília.

O vlog de Carolina e o feriado antecipado no calçadãoOnde histórias criam vida. Descubra agora