47 - É proibido ser razoável

10 0 2
                                    

Carolina foi pega de surpresa. Como não escutou Fernanda se levantar, espantou-se com sua interrupção.

Com o pulso latejando, olhou de relance para a loira, cujo delineador, umedecido pelas lágrimas, borrara-lhe os olhos, arruinando a maquiagem.

Fernanda mostrava-se recuperada. Exibia lábios rijos e ombros retos, com franjas descabeladas caindo sobre as sobrancelhas. Parecia uma investigadora desmazelada, pronta para um inquérito.

Se ainda pensava em Seu Paulo, era difícil adivinhar. Apenas permanecia ali, de pé atrás da cadeira, esperando uma resposta da vlogueira.

Carolina, notando seus olhos lacrimejados, lembrou-se de sua submissão ao zueiro. A gentileza, o sorriso, a oferta de propaganda gratuita no vlog: estas recordações oprimiram seu peito.

Tanto que, sentindo as veias saltarem, simplesmente disse, sem virar para Fernanda:

— Sim, Alice vai rasgar o contrato da Narcisa & Brizola. Eles cortaram a parceria conosco.

— Cristo meu! Quando foi isto?

— Hoje. Ela me contou enquanto conversávamos no corredor, um pouco antes de você aparecer.

— Mas por que eles nos cortaram?

— ...

Nisso, Fernanda sentiu o coração se contrair. Levou a mão ao peito, angustiada.

— Foi por causa do seu vlog?

— Hmm, não o vlog em si.

— Então...?

— Foi porque falei sobre clínicas de estética embrionária. Eles ficaram constrangidos com isso.

— Mas eu lembro da sua conversa com Alice. Você disse que foi imparcial.

— Sim, é verdade. Não defendi as clínicas e nem as condenei.

— Então qual foi o pecado? Isso, por si só, não é uma benção?

Carolina olhou para Fernanda, dando-lhe maior atenção. A barra da camisa se mexeu, pousando sobre o cós da sua calça jeans.

— Para o comércio brasileiro, não. Especialmente para a Narcisa & Brizola, que atende clientes de várias etnias. Se a loja quiser agradar a todos, precisa celebrar o multiculturalismo. E precisa fazer isto mantendo-se longe dos preconceituosos.

— Como assim? A Landschaft não é preconceituosa.

— Não. Mas a Café com Leite, a Rede Lobo e a Seja estão me acusando de preconceito. E eu trabalho na Landschaft, não?!

— Trabalha, mas e daí?! Pelo que entendi, você não condenou esse multi-não-sei-o-quê. Ou, pelo menos, não deu motivos para pensarem assim. Não tinham por que nos crucificar.

— Fernanda, o Brasil odeia a estética embrionária. Ou melhor dizendo: esse serviço é odiado por lideranças importantes do senado, das universidades amazonenses, do candomblé baiano e do setor cultural carioca. Eles acham que interferir na aparência de um bebê é um ato racista e imoral. Uma ameaça à nossa diversidade. Portanto, combatem as clínicas embrionárias do mesmo jeito que vocês, católicos, combatem o diabo.

Fernanda estremeceu. Fez o sinal da cruz, pedindo a proteção divina.

Carolina, balançando a cabeça, ignorou seu misticismo e continuou:

— Para o brasileiro médio, a estética embrionária é um demônio. Veio para fazer uma limpeza étnica. Para atender a vontade da classe média paulistana e sulista. Logo, ninguém quer falar no assunto. Ninguém quer ouvi-lo. E se alguém precisar dizer algo a respeito, tem de ser com indignação, reprovando sua existência.

Deu de ombros, como se negasse doces a uma criança mimada, enrugando o pé da sua gola.

— Como eu não fiz isto, a Narcisa & Brizola se constrangeu e achou melhor não divulgar no meu vlog.

— Tudo bem. Que seja. As clínicas são malditas. Ou, pelo menos, o povo diz que são malditas. E daí? Você não as recomendou.

— Realmente: não as recomendei. Mas também não as critiquei.

— Lá vem você de novo. É essa parte que eu não entendo!

— Você não me ouviu? Eu disse que, para o brasileiro médio, especialmente para a mídia, a estética embrionária é condenável. Não é politicamente correto elogiá-la. Não é politicamente correto ficar neutro sobre ela. Ou você fala mal, ou fica quieto. A opinião pública não aceita nada além disso.

Apontou o dedo para si, enfática.

— Como não falei mal, automaticamente pensam que eu apoio a coisa toda, e que portanto sou preconceituosa.

— Mas ficar em cima do muro, como você ficou, não significa apoiar, e sim não ter opinião.

— Você e eu sabemos disso. Mas e o brasileiro comum? Ele sabe?

— Eu... eu não sei. Deveria, não é?! Especialmente a Narcisa & Brizola.

— Sim, deveria. Você escolheu a palavra certa: DEVERIA. Mas a opinião dos brasileiros não é razoável. Ela é movida por paixão indisciplinada, tornando-a ainda mais extremista. Do ponto de vista deles, ou você é contra, ou é a favor. Ou é direitista, ou é esquerdista. Não acreditam em imparcialidade, nem no equilíbrio dos opostos. Só sabem ficar ariscos, caso alguém tente unir os dois lados. Ficam desconfiando de segundas intenções, como se tudo girasse ao redor de uma teoria da conspiração.

Carolina arfou, falando por mais tempo do que seu pulmão aguentava. Enquanto retomava o folego, Renato se dirigiu para a porta, levando Cloara em seus braços. As mechas da socialite se balançaram, ondulando nuca abaixo.

Cruzando por Valéria, o corpulento editor acenou para Seu Paulo, dizendo:

— Já chamei uma ambulância. Agora vou levar Cloara para o vestiário. Vou tentar acordá-la. O peso dela já tá me cansando. Acho até que as reportagens sobre dieta são fachada!

Por instinto, Valéria olhou para Cloara, avaliando a proporção do seu corpo. Mas quando percebeu o que estava fazendo, voltou-se sem graça para Seu Paulo, empurrando sua mecha cor de maçã para trás da orelha.

Retomando a pose, disse:

— Faz tempo que você chamou a ambulância?

— Não, mas talvez ela chegue antes de eu voltar. Uma de vocês precisa esperar aqui. E não pode ser Carolina, porque Carlos quer falar com ela.

— Bem, se Fernanda não puder ficar, eu fico.

Agora mais seguro, Renato partiu, certo de que Valéria cuidaria do resto. Seus passos eram ouvidos estúdio adentro, sumindo num abrir e fechar de porta.

Valéria, por sua vez, começou a observar Carolina, atentando ao que ela fazia. Notou que ela retirara o celular do bolso, usando-o para acessar a internet.

Abrindo a página principal da Seja, a vlogueira virou a tela para Fernanda, apontando-lhe os banners promocionais do site.

— Era isto que eu estava tentando dizer à Alice. O verdadeiro motivo de me chamarem de preconceituosa.

* * * *

Novo capítulo dia 25/08, as 00:00, horário de Brasília.

* * * *

Compilação dos capítulos 17 a 33 disponível gratuita no Smashwords, Itunes, Kobo e Barnes & Noble. Acesse a página do meu perfil para conferir os links.

O vlog de Carolina e o feriado antecipado no calçadãoOnde histórias criam vida. Descubra agora