Daniel, vendo Seu Paulo sumir no elevador dos clientes, quis pegar emprestado o cassetete de Marcelo e quebrá-lo na cabeça daquele senhor. Se fugisse do flagrante e se entregasse à polícia dali 24 horas, responderia em liberdade. Afinal, era um dos bônus especiais oferecidos pela ficha limpa: o primeiro delito era por conta da casa.
Porém, como tinha sangue de caingangue moderado, e não de italiano psicopata, resolveu descontar tudo em Marcelo, à base de resmungos. E embora não tivesse terminado de ditar a mensagem de texto ao seu celular, ainda assim se prontificou a ralhar com o segurança, dizendo:
— A política da imobiliária é celebrar a falta de respeito?
— Como é?
— Ou talvez a legislação te obrigue a lamber os pés de todos os brasileiros sem etiqueta, como sinal de respeito as nossas lideranças, donos do mesmo comportamento?
— Na verdade, me obriga sim. Por exemplo: se você relar um dedo num bandido, mesmo que seja em legítima defesa, o pessoal dos direitos humanos te comerá vivo.
— E você aceita isso calado, dizendo coisas como "você é um exemplo pra mim" para o cretino daquele senhor?
— E o que mais você esperava? Que eu ofendesse nosso melhor cliente de marketing e o expulsasse do prédio? Holerite, carteira assinada e fundo de garantia não se mantém puxando orelha, e sim puxando saco!
— Mas esse puxa-saquismo é pura servidão! Não tem nenhuma dignidade!
— Bem, então pode me chamar de cachorro manso, porque prefiro receber salário como um mascote dócil do que dormir na rua feito um vira-lata orgulhoso! Obrigado e bom dia, Daniel!
Deste ponto em diante, Marcelo começou a ignorá-lo, preocupando-se apenas em avisar o escritório sobre a chegada de Seu Paulo. Vestiu seu microfone headset e tentou se comunicar com Fernanda, a promotora de publicidade.
Não era idealista. Não tinha fome de reforma social. Não estava afim de confrontar ou reparar injustiças. Só queria garantir a costela e a cerveja do final de semana.
Já Carolina, ainda digerindo as palavras usadas por Seu Paulo, e até então só escutando a conversa de Daniel e Marcelo, percebeu a antipatia entre os dois. E não apenas isso: também notou a vontade de Daniel em levar a discussão adiante, como se quisesse converter Marcelo a uma nova religião. Não era Testemunha de Jeová, mas tinha uma teimosia equivalente a dos seus missionários.
Sentindo a necessidade de quebrar o gelo, e também ciente de que já era hora de trabalhar, puxou Daniel pela manga e o arrastou para longe do balcão. Seguiu até o elevador de funcionários, impedindo-o de recomeçar com seus resmungos.
Próxima à porta, soltou sua manga e começou a rir de sua cara, sorrindo de lábios fechados, num gesto de humorada reprovação. Evitando a severidade, disse condescendente:
— Que braveza é essa, homem?!
— Ah, Carol! O Marcelo é pau-mandado demais para o meu gosto! É por causa de pessoas como ele que temos corrupção, sabia?!
— E é por causa de pessoas teimosas como você que grandes ideias se tornam sinônimo de fanatismo religioso.
— E eu tô errado, por acaso?
— Na maneira de falar, eu diria que sim. Na boa?! Você fica se impondo demais. Fica falando alto, querendo ter a última palavra na discussão, como se fosse um militante apaixonado do movimento negro sob os holofotes da imprensa. Não pode ser assim. Ninguém liga para reformadores sociais escandalosos e bravinhos. Ninguém sequer os respeita.
— Ai Carol, você não tem jeito mesmo.
— Que foi?
— Primeiro fala sobre os cariocas, e agora fala sobre o movimento negro. E justamente quando te acusam de racismo, nazismo e qualquer outro "ismo" de má reputação.
— E eu lá tenho culpa de vocês colocarem minhas palavras fora de contexto? Eu não disse que o movimento negro, em si, não é respeitado, ou que não merece respeito. Eu só disse que os membros mais fervorosos, com seu jeitinho emburrado e sensível, acabam aborrecendo muito mais do que ganhando seguidores, e que você não deveria seguir o exemplo deles.
— Então... você acha que eu exagerei com Marcelo?
— Um pouco.
Carolina piscou um olho e lhe deu um tapinha no braço, toda charmosa e amiga, tentando fazê-lo rir.
— Relaxa, ok?!
— Eu tô relaxado, assim como você. E isso é estranho.
— O que é estranho?
— Você ficar assim, tão relaxada, mesmo depois de ouvir os desaforos daquele ranzinza de periferia.
— "Periferia"? Depois diz que sou eu quem fala coisas ofensivas.
— No momento, não tô com humor pra ser politicamente correto.
— Sei. Nem você e nem os militantes do Patriotismo Bolsonário. Agora, sobre eu estar relaxada... bem, eu só estou pensando no que o babaca do Paulo acabou de falar.
— E tem algo a pensar sobre isto? Digo, além de ele ser favelado?
— Daniel!
— Já disse que não tô com humor pra ser politicamente correto! Aguenta!
— Sabe, pra um descendente de indígena preocupado com uma limpeza étnica no país, você tem uma língua bem preconceituosa!
— Herança do meu Brasil brasileiro. Ou você acha que isso é exclusividade de branco? Mas o que você está pensando sobre o mano do morro?
— Meu Deus, Danie... ah, enfim! Não percebeu o jeito como ele falou?
— Bem, eu percebi um monte de abobrinhas saindo da boca dele. E também percebi o quanto ele não gosta de você.
— Com certeza não gosta de mim. E você sabe o porquê?
— Provavelmente porque ele faz parte do movimento Café com Leite. Eu vi o símbolo no boné.
— Sim, eu também. Mas não é disso que estou falando. Reparou nas palavras usadas por ele?
— Quais palavras?
— "Virjão", "vacilão" e "leléqui".
— Ah, isso? O que tem elas?
— São jargões usados em educandários.
Carolina entregou seu celular a Daniel e lhe mostrou a página dos Cowboys Recauchutados. Apontando para sua foto, disse:
— Ele participa de uma rede social exclusiva para homens. Lá, mulheres e transexuais são avaliados para amizade, paquera ou namoro. O avatar dele se chama Procriador Veterano, e enquanto você e eu conversávamos, ele adicionou meu perfil ao site.
— O QUÊ?
Com o celular de Carolina nas mãos, Daniel começou a navegar pelo Cowboy Recauchutado. Além de ver o perfil da colega, também acessou os perfis de outras garotas. Neles, havia comentários do tipo:
Ohh lá em casa!! Show de novinha! Vem pro colo do papai que eu te dou leitinho quente!
Antes que Daniel pudesse reagir, o celular anunciou a chegada de uma nova mensagem. Carolina o tomou para si, acessou a caixa postal e leu:
Usuário Procriador_Veterano comentou em seu perfil do Clube do Cowboy Recauchutado. O comentário diz: "Gostosa, mas azeda. Não pego nem pra chupar. Huehuehue."
Carolina fechou a mensagem e olhou para Daniel.
— Jargão de educandário, e agora esse "huehue". Eu sabia.
— Sabia do quê?
— Eu sei porque ele me adicionou nesse site, e sei quem ele é.
— Huh?
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O vlog de Carolina e o feriado antecipado no calçadão
ЮморQuando Carolina se tornou vlogueira, ela ainda acreditava no poder da honestidade. Achava que isto sempre falaria mais alto, independente da situação. Porém, ela acabou subestimando o maior vilão deste país: a agressividade da opinião pública brasil...