17 - É bem intencionado, mas não é bem-vindo

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Daniel, vendo Seu Paulo sumir no elevador dos clientes, quis pegar emprestado o cassetete de Marcelo e quebrá-lo na cabeça daquele senhor. Se fugisse do flagrante e se entregasse à polícia dali 24 horas, responderia em liberdade. Afinal, era um dos bônus especiais oferecidos pela ficha limpa: o primeiro delito era por conta da casa.

Porém, como tinha sangue de caingangue moderado, e não de italiano psicopata, resolveu descontar tudo em Marcelo, à base de resmungos. E embora não tivesse terminado de ditar a mensagem de texto ao seu celular, ainda assim se prontificou a ralhar com o segurança, dizendo:

— A política da imobiliária é celebrar a falta de respeito?

— Como é?

— Ou talvez a legislação te obrigue a lamber os pés de todos os brasileiros sem etiqueta, como sinal de respeito as nossas lideranças, donos do mesmo comportamento?

— Na verdade, me obriga sim. Por exemplo: se você relar um dedo num bandido, mesmo que seja em legítima defesa, o pessoal dos direitos humanos te comerá vivo.

— E você aceita isso calado, dizendo coisas como "você é um exemplo pra mim" para o cretino daquele senhor?

— E o que mais você esperava? Que eu ofendesse nosso melhor cliente de marketing e o expulsasse do prédio? Holerite, carteira assinada e fundo de garantia não se mantém puxando orelha, e sim puxando saco!

— Mas esse puxa-saquismo é pura servidão! Não tem nenhuma dignidade!

— Bem, então pode me chamar de cachorro manso, porque prefiro receber salário como um mascote dócil do que dormir na rua feito um vira-lata orgulhoso! Obrigado e bom dia, Daniel!

Deste ponto em diante, Marcelo começou a ignorá-lo, preocupando-se apenas em avisar o escritório sobre a chegada de Seu Paulo. Vestiu seu microfone headset e tentou se comunicar com Fernanda, a promotora de publicidade.

Não era idealista. Não tinha fome de reforma social. Não estava afim de confrontar ou reparar injustiças. Só queria garantir a costela e a cerveja do final de semana.

Já Carolina, ainda digerindo as palavras usadas por Seu Paulo, e até então só escutando a conversa de Daniel e Marcelo, percebeu a antipatia entre os dois. E não apenas isso: também notou a vontade de Daniel em levar a discussão adiante, como se quisesse converter Marcelo a uma nova religião. Não era Testemunha de Jeová, mas tinha uma teimosia equivalente a dos seus missionários.

Sentindo a necessidade de quebrar o gelo, e também ciente de que já era hora de trabalhar, puxou Daniel pela manga e o arrastou para longe do balcão. Seguiu até o elevador de funcionários, impedindo-o de recomeçar com seus resmungos.

Próxima à porta, soltou sua manga e começou a rir de sua cara, sorrindo de lábios fechados, num gesto de humorada reprovação. Evitando a severidade, disse condescendente:

— Que braveza é essa, homem?!

— Ah, Carol! O Marcelo é pau-mandado demais para o meu gosto! É por causa de pessoas como ele que temos corrupção, sabia?!

— E é por causa de pessoas teimosas como você que grandes ideias se tornam sinônimo de fanatismo religioso.

— E eu tô errado, por acaso?

— Na maneira de falar, eu diria que sim. Na boa?! Você fica se impondo demais. Fica falando alto, querendo ter a última palavra na discussão, como se fosse um militante apaixonado do movimento negro sob os holofotes da imprensa. Não pode ser assim. Ninguém liga para reformadores sociais escandalosos e bravinhos. Ninguém sequer os respeita.

— Ai Carol, você não tem jeito mesmo.

— Que foi?

— Primeiro fala sobre os cariocas, e agora fala sobre o movimento negro. E justamente quando te acusam de racismo, nazismo e qualquer outro "ismo" de má reputação.

— E eu lá tenho culpa de vocês colocarem minhas palavras fora de contexto? Eu não disse que o movimento negro, em si, não é respeitado, ou que não merece respeito. Eu só disse que os membros mais fervorosos, com seu jeitinho emburrado e sensível, acabam aborrecendo muito mais do que ganhando seguidores, e que você não deveria seguir o exemplo deles.

— Então... você acha que eu exagerei com Marcelo?

— Um pouco.

Carolina piscou um olho e lhe deu um tapinha no braço, toda charmosa e amiga, tentando fazê-lo rir.

— Relaxa, ok?!

— Eu tô relaxado, assim como você. E isso é estranho.

— O que é estranho?

— Você ficar assim, tão relaxada, mesmo depois de ouvir os desaforos daquele ranzinza de periferia.

— "Periferia"? Depois diz que sou eu quem fala coisas ofensivas.

— No momento, não tô com humor pra ser politicamente correto.

— Sei. Nem você e nem os militantes do Patriotismo Bolsonário. Agora, sobre eu estar relaxada... bem, eu só estou pensando no que o babaca do Paulo acabou de falar.

— E tem algo a pensar sobre isto? Digo, além de ele ser favelado?

— Daniel!

— Já disse que não tô com humor pra ser politicamente correto! Aguenta!

— Sabe, pra um descendente de indígena preocupado com uma limpeza étnica no país, você tem uma língua bem preconceituosa!

— Herança do meu Brasil brasileiro. Ou você acha que isso é exclusividade de branco? Mas o que você está pensando sobre o mano do morro?

— Meu Deus, Danie... ah, enfim! Não percebeu o jeito como ele falou?

— Bem, eu percebi um monte de abobrinhas saindo da boca dele. E também percebi o quanto ele não gosta de você.

— Com certeza não gosta de mim. E você sabe o porquê?

— Provavelmente porque ele faz parte do movimento Café com Leite. Eu vi o símbolo no boné.

— Sim, eu também. Mas não é disso que estou falando. Reparou nas palavras usadas por ele?

— Quais palavras?

— "Virjão", "vacilão" e "leléqui".

— Ah, isso? O que tem elas?

— São jargões usados em educandários.

Carolina entregou seu celular a Daniel e lhe mostrou a página dos Cowboys Recauchutados. Apontando para sua foto, disse:

— Ele participa de uma rede social exclusiva para homens. Lá, mulheres e transexuais são avaliados para amizade, paquera ou namoro. O avatar dele se chama Procriador Veterano, e enquanto você e eu conversávamos, ele adicionou meu perfil ao site.

— O QUÊ?

Com o celular de Carolina nas mãos, Daniel começou a navegar pelo Cowboy Recauchutado. Além de ver o perfil da colega, também acessou os perfis de outras garotas. Neles, havia comentários do tipo:

Ohh lá em casa!! Show de novinha! Vem pro colo do papai que eu te dou leitinho quente!

Antes que Daniel pudesse reagir, o celular anunciou a chegada de uma nova mensagem. Carolina o tomou para si, acessou a caixa postal e leu:

Usuário Procriador_Veterano comentou em seu perfil do Clube do Cowboy Recauchutado. O comentário diz: "Gostosa, mas azeda. Não pego nem pra chupar. Huehuehue."

Carolina fechou a mensagem e olhou para Daniel.

— Jargão de educandário, e agora esse "huehue". Eu sabia.

— Sabia do quê?

— Eu sei porque ele me adicionou nesse site, e sei quem ele é.

— Huh?

O vlog de Carolina e o feriado antecipado no calçadãoOnde histórias criam vida. Descubra agora