Ano de 2078
Elizabeth
Sentada naquela velha poltrona cheia de ácaros, apertava junto a mim aquele diário de Felipe. Isabel me olhava como se não me compreendesse.
- Então você simplesmente desistiu? – ela me questionou com a voz falha enquanto eu olhava para suas inquietas mãos enrugadas.
- No final das contas, Felipe estava errado. Eu não sou forte como ele imaginou.
- Como conseguiu passar todas essas décadas sozinha em sua casa? – Isabel continuava com as perguntas.
- Os primeiros anos foram desoladores, mas eu aprendi a fazer da solidão a minha companhia.
Eu passava os dedos nos papéis amarelados e velhos nas minhas mãos.
- E isso é tudo que você tem? É tudo que trouxe consigo? Um diário, um caderno de receitas, dois diplomas e uma carta?
- Quando fugi, só levei comigo a roupa que estava em meu corpo e esses papéis. Eram e ainda são os únicos bens que importam pra mim.
- Sempre dividimos o quarto desse asilo monótono, mas você sequer trocava meia dúzia de palavras comigo durante o dia. Por que?
- Eu não podia me permitir apegar-se a ti, Isabel.
- E por que hoje mudou? Por que hoje decidiu sentar-se e conversar comigo como duas senhoras companheiras? Decidiu contar a sua história. O que hoje tem de diferente dos outros dias, Elizabeth?
- Eu sinto algo, Isabel. Em breve saberá o que é.
Ela me olhou com os sobrancelhas brancas arqueadas.
- Saberei o que? A cada pergunta que te faço minhas dúvidas só aumentam.
- Felipe também estava errado em outra coisa. Ele disse na carta que não existe só uma alma gêmea. Eu só tive uma e a perdi cedo demais.
- Não, Elizabeth. Você certamente teve outra alma gêmea, apenas não se permitiu conhece-la. Talvez foi um vizinho seu, um companheiro do trabalho ou um bonitão que esbarrou no metrô. Mas temo que nunca mais terá a oportunidade de conhecer a sua outra alma gêmea. – Isabel comentou e talvez ela esteja certa, mas jamais poderei ter certeza.
- Agora já passo dos meus noventa e quatro anos. Isso tudo foi há muito tempo atrás, não vale a pena pensar nas possibilidades que tive.
- Mas, e então? Você citou que tinha um certo medo de superar Felipe, mas ao mesmo tempo, precisava supera-lo. Você conseguiu? Conseguiu superar?
- Isabel, achas mesmo que se eu tivesse conseguido teria passado décadas em completa e absoluta solidão?
- Isso é a maior loucura que já ouvi. – suas pernas balançavam em um ritmo desenfreado. - E suas amigas? Não sente falta delas?
- Sinto por todos os dias da minha vida. Mas sequer sei se elas estão vivas ou mortas.
- Elizabeth? – Isabel passou as mãos por meus cabelos brancos e fracos. – Você se arrepende de ter ido embora? – ela falou com uma voz serena.
- Essa pergunta não conseguirei te responder. Eu seria mais feliz se tivesse ficado lá, mas não é questão de felicidade. Eu não seria capaz de continuar lá.
- Minha querida, ainda há tempo. Podemos conversar com a direção do asilo, podemos fazer um apelo para que tentem entrar em contato com as suas velhas amigas. Elas ainda podem estar te esperando.
- É tarde demais. Por mais que eu continue amando Alicia e Natália, é preferível por mim deixar o passado no passado.
Olhei por um tempo para o relógio de parede, meus óculos já estavam ficando fracos demais para a minha visão cansada. Ainda assim, pude ver que já era tarde da noite.
Falei para Isabel:
- Já está na hora de dormirmos, não vamos correr o risco de acordar os idosos do quarto ao lado com nossas conversas. Boa noite. – falei com um sorriso no rosto.
- Boa noite, Elizabeth.
Deitei-me na cama e quando estava prestes a fechar os olhos, ouvi Isabel dizer:
- Não pare de falar comigo, não quero que volte a me tratar apenas como sua companheira de quarto. Vamos ser amigas, Elizabeth. Podemos fazer nossos últimos meses ou anos de vida valerem a pena.
Apenas assenti.
Naquela noite, sonhei com o ano de 2020. Felipe estava vivo e tínhamos uma família. Ele buscou nosso filho na escola, cujo nome era Leonardo. Os cachinhos no cabelo do nosso filho me lembrava o cabelo de Felipe, mas os olhos e o sorriso eram meus. Naquele sonho, Léo estava chateado com algo que ocorreu na escola e, Felipe logo o animou prometendo pizza no jantar e lhe emprestando o diário dele. Esse mesmo diário que eu possuo em minhas mãos agora. O diário da nossa história.
Eu sabia que não iria acordar na manhã seguinte. Desde a morte de Felipe, essa foi a melhor noite que tive durante todos esses anos. Porque é nessa noite que irei reecontrar o meu amor. O meu Felipe.
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360 HORAS
RomanceElizabeth e Felipe tinham tudo para dar certo, até que uma doença fatal e minuciosa os ataca quando eles menos esperam. Os dois terão que sobreviver a isso juntos... ou não!