Passo pelo corredor acenando para os meus irmãos, nada interessado em gastar o pouco de voz que ainda me resta com os dois, depois de passar essa tarde gritando furiosamente com nove caras que não tinham a menor ideia do que fazer com uma bola. Só o Rodrigo salva no time de médicos do Mercury.
— O que eu fiz de errado? — disparo roucamente quando entro em seu ateliê, quase não reconhecendo minha própria voz.
Essa é a única razão plausível para que meu pai tenha me mandado uma mensagem pedindo que eu passasse na joalheria sem querer especificar o motivo. Devo ter feito alguma merda. Quando é assim, o velho gosta do "efeito" surpresa.
— Estou me fazendo a mesma pergunta o dia inteiro — responde em italiano, soltando o lápis de desenho para me encarar com seriedade.
Tomar bronca em italiano é um péssimo sinal.
— Será que dá para me responder e acabar logo com isso? Estou faminto.
Seus olhos se estreitam.
— Como é? — No instante em que afasta a cadeira para longe da mesa e fica de pé, eu sei que estou fodido. — Onde foi que eu errei, Dio Mio?
Suspira dramaticamente vindo atrás de mim, mas sou mais rápido. Antes que possa chegar perto demais me apresso em dar a volta na mesa e continuo andando de costas ao redor dela para ficar mais fácil conseguir desviar, caso sua bengala tente arrebentar as minhas canelas "por acidente".
— Será que esse ragazzo é assim porque nunca consegui fazer com que frequentasse uma igreja, Senhor?
É pior do que eu pensei. Ele está falando em italiano. Com Deus.
Mas que porra eu fiz?
— Eu o alimentei bem, e olha que isso é complicado porque o Senhor bem sabe o quanto essa peste é exigente, comprei as melhores roupas e nunca permiti que passasse uma noite sequer ao relento, embora algumas vezes não me tenha faltado vontade de amarrá-lo em uma árvore no quintal.
Estamos na segunda volta à mesa e eu já estou me sentindo encurralado, ainda não lembrei de nada que eu tenha feito que pudesse tirá-lo tanto do sério. Sou comportado. Sou o mais comportado, tirando o Gael. Os outros dois é que são problema.
— Paguei anos de escolas particulares mais salgadas que a água do mar, por onde eu adorava navegar quando ainda tinha um iate. Anos!
— Não tive nada a ver com a história desse maldito iate — interrompo.
Ele me ignora e continua falando com alguém que só vai responder quando um de nós finalmente o matar, mas achei válido mencionar minha inocência nessa história em questão porque o gaveteiro da memória do nosso pai, onde nossas merdas são arquivadas, não tem divisórias. É bem comum nesses momentos de bronca pagarmos pelos erros uns dos outros. Sempre que relembra, a bengala nos castiga outra vez.
Memória seletiva do cacete.
— Expliquei direitinho que não podia acabar com as noites de sono de ninguém como acabou com as minhas desde a época em que descobriu para o que o brinquedo dele servia com a ajuda da empregada. Expliquei com carinho, sabe? —Essa saiu do fundo do baú. — Fiz o possível para fazer dele um homem digno, que respeita as mulheres!