— Shawn?
Ele tira seus olhos lentamente das janelas de madeira, por onde está observando a chuva lavar o bairro, e me olha com um par de olhos mais negros que meu medo de ser rejeitada.
Mais negros que meu passado de abandonos.
Mais negros do que a ideia de ser colocada em uma caixinha de sapatos pela mamãe.
— Você me ama? Nem que seja um pouquinho...?
Minha pergunta basta para que saia abruptamente de dentro de mim e também da cama. Tremo por inteiro quando desaparece dentro do closet do quarto.
Por que está se vestindo?
Enquanto escuto o farfalhar dos cabides, tento encontrar coragem de lidar com a merda sem tamanho que eu fiz, mas até que voltasse vestindo um jeans de lavagem clara e uma camiseta vermelha e simples, jogasse a chave do carro dele em cima de mim e caminhasse a passos duros até a porta, eu ainda não havia conseguido.
— Espere!
Ele para com metade no corpo no corredor.
— Olha para mim, Shawn! — imploro, saindo da cama.
Shawn me olha como se eu tivesse cometido um pecado sem perdão. É um olhar tão feio que, pela primeira vez, me sinto uma merda estando nua na sua frente.
— Não acredito que, depois de tudo, você ainda tem a coragem de me fazer essa pergunta!
Puxo o edredom com as mãos trêmulas para me cobrir.
— Eu... — gaguejo.
— Fiz tudo que eu podia por você, e ainda assim não bastou?
Não o contradigo porque infelizmente ele está certo. Vejo isso agora. De maneira tão vivida quanto sinto a dor no meio das minhas pernas.
Eu quero aquilo que nunca conheci.
Eu quero amor.
E quem pode me julgar? Definitivamente não alguém que foi embalado pela mãe quando nasceu, que tomou seu leite para se fortalecer, que deu os primeiros passos segurando em suas mãos e teve as primeiras palavras escapulindo dos lábios para chamá-la. Não alguém que fez, em seus primeiros anos na escola, desenhos para presenteá-la com um sorriso; que ansiava por um elogio depois de passar pelas portas de uma casa, que podia chamar de lar. Não alguém que foi acolhido em noites de tempestade e teve uma cama quente onde se abrigar. Quem teve tudo isso precisa calar a boca e engolir a minha dor. Engolir meu desejo de ser amada verdadeiramente por alguém que eu escolhi para ser o rumo que eu queria tomar na minha vida.
Eu presumo que ele também não teve, mas está julgando mesmo assim.
Eu necessito disso. Necessito ser de alguém que me ame. Sempre necessitei, e o bilhete que guardo na carteira pode comprovar.
Não compreendo como pode ter ficado tão endurecido, muito menos consigo imaginar algo que seja ruim o bastante para tê-lo tornado esse homem intransigente que se transforma em puro ódio quando o assunto é amor, mas quando me dá as costas e seus passos pesados estalam pesadamente nos degraus da escada, a única coisa da qual eu sinto que necessito de verdade é dele.
O que foi que eu fiz? Mas que merda eu fiz? Descumpri a promessa mais importante que já fiz ao Shawn.
Subo o vestido apressadamente pelas pernas bambas e ignoro os sapatos guardados dentro da bolsa, que agarro antes de sair correndo do quarto. Mesmo que tenha me dado a chave, não uso o Jack. Não me sinto bem para dirigir. Não me sinto bem nem para respirar.
Escutei a porta da frente bater enquanto colocava a calcinha e sei que saiu de casa na chuva. Corro. Corro muito, e quando chego à rua e o avisto dobrando a esquina, eu corro mais, mas minhas pernas não são páreo para as dele. Deve ser mais de onze da noite e a rua está deserta e mais escura que o habitual, mas o único medo que eu sinto, enquanto o vejo correndo embaixo da chuva para longe de mim, é o de perdê-lo. Ele não me nota.
Procuro minha voz para gritar seu nome, mas não a encontro em lugar nenhum. Meu peito dói em todos os sentidos da frase quando o perco de vista, mas resisto um pouco mais. Resisto até o destino me dizer que já chega.
Estou me sentindo anestesiada de tal maneira que, quando um carro negro, como o remorso que está consumindo minha alma, sai da garagem de uma das casas e breca com tudo para não me atingir, solto um grito agudo apenas dentro dos meus pensamentos. Da minha boca só saem choramingos.
Com o susto, estaco abruptamente no meio-fio sem tirar os olhos da esquina onde o perdi, apoio as mãos no capô do tal carro e busco o ar que me falta, alheia ao mundo ao redor. Até que eu escute a porta dele abrir e uma voz conhecida me chamando de algo que hoje é apenas uma mera ilusão. Não tem um raio de luar que seja me inundando.
Só chuva.
Só dor.
Só a chuva que, por mais abundante que seja, não lava minha dor, mas encharca o terno bonito efeito sob medida dele nos poucos segundos que leva para abandonar a porta do Jaguar, ainda aberta, e correr ao meu encontro.
Vai molhar os bancos.
Ele não se importa, e eu muito menos. Tudo que me importa é o homem que fugiu do meu amor.
— Que diabos você pensa que está fazendo andando sozinha na rua a uma hora dessas no meio de um temporal? — esbraveja. — Te fiz uma pergunta! Por pouco não...
Quando para na minha frente e realmente me olha de perto, a resposta para sua pergunta se torna mais do que uma necessidade.
— Suas roupas... — murmura assustado, me fazendo notar que o vestido, que deveria bater nos meus joelhos, subiu e está mostrando mais do que minha decência permite. — O que aconteceu com você?
Suas mãos abaixam meu vestido rapidamente e tomam meu rosto, me obrigando a olhar em seus olhos.
— Responde, amor!
Kai parece aflito. Ele lida com a maldade diariamente, e logo pensa em uma. Não deixa de estar errado.
— Briguei com o Shawn... — sussurro por entre as lágrimas, deitando o rosto em sua mão sem saber ao certo o que mais dizer.
Kai me leva até a porta da frente da Xavier & Pallace.
— Fique aqui! — ordena severamente, caminhando pela chuva a passos comedidos até o Jaguar, que estaciona na área destinada aos visitantes.
Ele refaz o caminho até aquilo que eu me tornei. Uma idiota chorando com a testa contra a porta da mesma construção aonde sua vida desabou. O mais bobo? Mesmo depois de me abandonar, tudo o que eu mais queria nesse momento é a minha mãe. Mãe é aquela pessoa com quem a gente conta quando as pessoas nos machucam, mas e eu? O que eu faço? O que eu faço se a pessoa que mais me machucou é justamente aquela que deveria me abrir uma porta hoje? É uma resposta simples.
Fecho meus olhos para outro machucado e passo pela única que se abre para mim e depois, quando minhas pernas cedem, ainda me sinto grata pelos braços que se fecham ao meu redor e me impediram de cair.
Eu rodei, rodei, rodei e no fim parei aqui, dentro do abraço do diabo, aquele que, mesmo furioso por me ver perder o rumo por causa de outro homem em um momento de desespero, ainda me chamou de amor.
Amor.
A mesma palavra que destruiu o príncipe do diamante.
A mesma palavra que vai fazer o príncipe do diamante me destruir.