O interfone toca assim que colocamos os pés dentro de casa.
Camila larga a bolsa de qualquer jeito em cima da mesa e corre para atender como se estivesse indo salvar seu estimado celular que caiu na privada, algo que eu espero que nunca aconteça porque não tenho certeza de que minha garota se recuperaria dessa perda.
— É minha pessoa favorita, querido! — berra da cozinha.
O que eu escuto?
Vou demorar uma eternidade para desgrudar desta porra, querido!
Escuto uma cadeira sendo arrastada para mais perto do interfone e dou adeus à ideia de já ir arrancando seu vestido pelo corredor.
— Pessoa favorita. — resmungo para a bolsa que levo comigo para o quarto, determinado a passar uma água no corpo e ignorar o ciúme que tenho dela até com pessoas feitas de letras, para esperá-la terminar de fofocar sobre os detalhes do seu primeiro dia oficial de trabalho na cama, em companhia de um romance contemporâneo, que está enchendo meu saco para que eu leia desde que voltou a falar comigo. Mila quer ter com quem conversar sobre certo maconheiro de merda que a fez molhar as calcinhas durante os dias em que estávamos brigados. — Por acaso foi minha cunhada quem colocou os próprios princípios de lado e enfrentou os irmãos para arrumar um trabalho para ela? Foi minha cunhada quem pintou as paredes da sala dela e acabou de falir com uma conta absurda em um dos restaurantes mais caros da cidade só porque o chef se formou em Paris? Eu deveria era ter pedido uma lasanha em forma de agradecimento. Isso sim, Char!
Ela me olha de canto enquanto a coloco na poltrona.
— Ok! Eu sei que estava devendo esse jantar depois do lance da calcinha e tal, mas mesmo assim...
Estou falando com a bolsa de novo, penso respirando fundo.
Deve ser o sono.
Consegui dormir no sofá apenas por uns quarenta minutos quando cheguei do hospital, depois de atender o paciente que me ligou ontem, até que uma criatura toda animada entrasse no apartamento, no fim da tarde, porque não estava se contendo de ansiedade para me contar como tinha sido sua conversa com meu pai e o quanto estava abismada com o salário que faz do meu uma piada de mau gosto – o mesmo salário que nunca vai saber que fui eu quem determinou, porque não quero que pense nem um segundo que não é merecedora dele. Tentei me fingir de morto. Não deu certo! Camila foi direto para a cozinha e, depois de escutar as panelas batendo sem querer por uns bons cinco minutos enquanto fazia minha janta, desisti de ganhar aquela briga com a garotinha de cinco anos que mora dentro dela. Tive paz quando sua boca fechou? Não.
No meio do segundo tempo do jogo, recebi um telefonema do Rodrigo que, só para foder mais com a minha vida, caiu da escada trocando uma lâmpada e machucou o pulso. Nós fomos buscá-lo e passamos uma noite agradável na emergência do Memorial Mercury — não foi agradável para as enfermeiras, que aturaram meu péssimo humor, e nem para o ortopedista, que acordei aos gritos para confirmar o diagnóstico depois que tirei a radiografia por conta própria. O diagnóstico? Frescura no rabo!
Eu já estava puto porque o Palmeiras perdeu.
— Não acredito que ainda não abriu o livro da Cinthia Freire! — Ergo o olhar e a vejo entrando no quarto. — Ficou fazendo o quê nos últimos quarenta minutos?
— Ruminando o desastre do jogo de ontem.
— É aquilo que dizem — comenta com ar de suspense, parando ao meu lado. — Azar no jogo, sorte no... ah, esquece!
Hein?
— Não vai se trocar para deitar? — mudo de assunto quando encara os pés sem os sapatos, que eu aposto meu carro que chutou pelo meio da cozinha.