— Número desconhecido. — Ele ergue o olhar do celular para me encarar com seus olhos, que não refletem nada de pena, como sempre acontece quando o assunto é meu passado. Odeio esse olhar. — Quer que eu atenda?
Nego. Eu não abandonaria uma paciente, mesmo morrendo por dentro.
Pego o aparelho de cima da mesa e reclino as costas na cadeira para atender, desejando ardentemente que seja um caso dos bons, daqueles que me faça ficar horas em pé em um centro cirúrgico segurando uma pinça até não ser mais capaz de sentir as pernas. É algo péssimo de dizer, mas abrir o crânio de alguém com uma serra nesse momento, aonde meus pensamentos teimosos insistem em se perder dentro de um passado que eu não posso mudar, viria bem. Eu sou o que sou. Eu sou o que aquela mulher me tornou.
Sou o maior pecado de Vivian Pacholek.
— Shawn.
— Seu maldito desgraçado! — rosna o advogado, e quem sou eu para discordar?
Meu sangue esguicha e inunda o consultório onde o obstetra de plantão está atendendo essa noite no instante em que registro sua voz.
— Mas que diabos você fez com a Camila? — vocifera com mais ódio do que há no inferno, e a reposta certa seria...
Eu não a amei.
— Onde minha garota está?
Mas que pergunta estúpida! Ela correu para ele. Não posso acreditar que ela correu para o Kai.
Meu cotovelo escorrega pela mesa e a testa, que estava apoiada na minha mão, só não bate no tampo porque meu melhor amigo é rápido em agarrar minha mandíbula.
Rodrigo ergue meu rosto e me olha preocupado.
— Mantenha a calma, por favor. — pede em um murmúrio.
— Diferente de você, que me deixou perecer sem notícias dela por semanas, sou homem o bastante para dizer que nossa garota está em meu escritório. — alfineta. — Se a quiser de volta, terá que arrastar sua bunda até aqui, príncipe do diamante.
Ele desliga na minha cara e no mesmo instante eu levanto da cadeira.
Bato a porta do carro, respirando profundamente o ar noturno que ainda cheira à chuva. Diminuo a distância até o imponente sobrado branco, onde entrei para resgatá-la meses atrás, escutando a voz do advogado sussurrando dentro dos meus pensamentos que minha namorada correria de volta para os seus braços no instante em que eu cometesse um erro.
Parabéns, Kai, você tinha razão.
Tem tanto ódio me consumindo, que quase não sinto meus pés em contato com o asfalto enquanto atravesso a rua. Ódio dos dois. Da mulher que arruinou minha vida, tornando-me um homem indigno de merecer a Camila; e especialmente de mim mesmo, que nunca fui capaz de passar por cima disso para nos dar uma chance. Infelizmente, como eu disse, eu sou o que sou. Não sou feito de papel como os homens com os quais minha garota sonha. Eu sou de carne e osso, e homens de carne e osso, quando se machucam, não se curam milagrosamente no final da história. Eles a arruínam.
Descubro, na primeira tentativa com a maçaneta, que a porta da frente está destrancada; e, depois daquele telefonema, isso em nada me surpreende. Sei que estão me esperando. Sem vontade nenhuma de me anunciar, adentro o primeiro andar imerso em breu e subo as escadas de dois em dois degraus, vivendo um déjà vu que termina no patamar. A luz da sala dele, como naquela noite, também está acesa, mas em vez dos sons característicos de uma trepada, a única coisa que escuto quando entro no corredor é a voz dele tentando acalmá-la.
Paro antes da porta por um instante e respiro fundo, me preparando para o que vou encontrar lá dentro, mas não adianta. Tomo um chute na soleira quando os vejo juntos. Camila está chorando sentada na beirada do sofá de couro preto, corpo encurvado e a mão escondendo o rosto enquanto o advogado se mantém sentado ao seu lado, com uma das mãos ao redor dos ombros dela e a boca, que lhe contou tantas e tantas mentiras, pressionada em seu ouvido dizendo que está tudo bem, que eu estou chegando, que tudo vai se acertar...Ele não sabe, mas está mentindo outra vez.