Almaldiçoada

84 - Quando Anabelle perdeu mais do que imaginava que poderia

Anabelle

O medo que percorria seu corpo era inédito – mesmo quando antes estivera em diversas situações perigosas – e a paralisava completamente, enquanto via Charlie se descontrolar, libertando dentro de si o monstro que ela sempre soube que a humana atormentada carregava. Não era apenas o poder que engolfava o recinto que denunciava que Charlie não era mais ela mesma. Sua aparência era feroz, animalesca, seus olhos injetados de uma fúria que ela nunca vira antes. Uma fúria que não deveria pertencer a um ser humano.

Anabelle ignorou Alexander ao seu lado – haveria tempo depois para explicações, mas primeiro eles precisavam conter o avanço de Lúcifer dentro da humana, ou não restaria mais nada.

— Charlie... não deixe que ele a domine — Anabelle iniciou seu discurso com cautela, sem conseguir disfarçar o medo em suas palavras — não permita que se transforme no monstro que eu acreditei que seria quando descobrisse o que carrega dentro de si.

Seu engodo foi bem-sucedido, e com pavor observou a cabeça de Charlie se virar lentamente até ela, o rosto transtornado, como se ainda lutasse em se decidir quem era. Em alguns momentos Anabelle via o rosto dela, modificado levemente por sua transformação em fetiche, para logo depois ver o rosto do ser dentro dela.

— Cria de Sahriel, mantenha-se fora do nosso caminho. Ela não deseja machucá-la... ainda — a voz ainda era de Charlie, e Anabelle se permitiu um pequeno alívio. Ainda poderia haver chances de trazê-la de volta completamente. Tirá-la do domínio de Lúcifer.

— Anabelle, o que está acontecendo? Quem é esta humana? Não consigo entrar em sua mente... ela não deveria ser capaz de anular meus poderes. Qual o interesse de Haniel...

— CALE-SE! NÃO ADMITIREI QUE FALES EM MINHA PRESENÇA, CRIANÇA IMPURA — Charlie respondeu, virando-se bruscamente para Aniel, que falava com ela com sua petulância natural. Era possível sentir o ódio que havia dentro dela, e Anabelle tremeu novamente. Não havia nada pior que aquela fúria ressonando na presença de Charlie.

Mestre... — um leão se materializou no meio de todos, o mesmo que Anabelle vira antes, de relance, com o grupo de Charlie, que hesitou quando olhou para ela. Anabelle reconhecera sua figura da Menoa, ao lado de seu pai. Ela gostaria de entender o que estava acontecendo, mas não era seguro abrir sua mente naquele momento para Alexander. Lúcifer era poderoso o suficiente para dominar Charlie, assim como a mente de todos ao seu redor num piscar de olhos.

— Alaor, não se intrometa. Este assunto é entre Aniel e nós. E por nós digo Charlie e eu. Mantenha Alexander e Anabelle longe de nós se não quiser perder outro mestre — Lúcifer não olhou para o leão, mantendo Aniel cativo em seu olhar perfurante — Vassago não será um problema para nós. Ele está desacordado, mas não morto. E deseja no fundo de seu coração o mesmo que nós.

— Quem é você? — Aniel pareceu perceber o perigo em que se encontrava, e sua postura mudou levemente, como se fosse um felino acuado. Todos olhavam para Charlie, e todos a temiam. Menos Aniel, que Anabelle percebeu, não a temia o suficiente.

Sem responder Aniel, ela observou Charlie levantando seu braço esquerdo com apreensão, chamando a alma da humana morta para perto, diminuindo-a enquanto ela se aproximava, ao ponto de caber em sua mão, fechando os dedos sobre a forma de luz dourada com delicadeza. Aquele foi o único momento em que a fúria de Charlie balançou levemente. Todos observaram em silêncio enquanto ela levava a alma de encontro ao seu outro braço, guardando-a dentro de seu próprio corpo, deixando um rastro negro na pele branca de fetiche – a marca da humana morta.