55 - Quando Lúcifer tomou conta de mim

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Charlie

Meu grito pareceu ter feito algo acontecer, pois tudo o que acontecia ao meu redor travou, como se eu tivesse apertado o pause num controle remoto. As únicas coisas que ainda se mexiam neste frame distorcido eram eu e a cobra, que virou sua cabeça peçonhenta para mim.

Eu via em seus olhos que havia reconhecimento. Ela soube quem eu era no momento em que eu gritei. Mas não deveria ser difícil para ela, afinal eu estava sentindo algo queimar dentro de mim. E eu também sabia o que era aquilo.

Por um momento eu acreditei que poderia estar novamente presa em meus piores pesadelos, mas não havia fogo me queimando – não... ele estava dentro de mim, envolvendo minhas entranhas em puro e absoluto calor.

Me deixe ajuda-la, criança... — não tinha como não reconhecer aquela voz. Eu a reconhecia das memórias que assisti, e também de quando toquei em Beleth. O capeta queria me ajudar. Era ele quem queimava todo o meu ser.

Não... não preciso de você — eu respondi em minha mente, querendo que aquilo parasse. Não queria mais vê-lo, ouvi-lo... eu queria ser apenas a Charleene.

Por que eu não poderia salvar Astaroth sendo eu mesma? Por que eu precisava da ajuda de outros seres para ser capaz de ajudar os que precisavam?

Me deixe salvar o meu filho, criança... Midgard foi modificada por Purson, Raziel não será capaz de pará-la... — a voz agonizava e eu vacilei. Ele parecia desesperado como eu.

Apesar de tudo estar parado, conseguia ver que a cobra tentava voltar a atacar o pescoço de Astaroth, ao perceber que nós duas éramos as únicas que ainda podiam se mexer. E ela não pareceu se importar com seu mestre queimando dentro de mim – ela só queria matar.

Sem conseguir conter o fogo dentro de mim, uma força que eu não entendi – mas que sabia vir do ser que habitava em mim – moveu minha mão em direção à espada, que ainda pendia em minha cintura, sem nome e sem utilidade, e com mais velocidade que eu acreditei que seria capaz de me mover, minha mão e a espada cortaram a cobra em duas, no ar, quando ela estava à alguns centímetros de seu alvo.

Quando seu corpo bateu no chão de madeira com um baque surdo, tudo voltou ao normal, e então era Purson que gritava, transtornado.

Eu estava próxima de Astaroth, mas não consegui olhá-lo, encarando a alma animal que agonizava aos meus pés, ecoando os gritos de seu mestre. Uma lágrima desceu pelo meu rosto, mas não era como as outras que eu chorei desde que peguei o novo corpo – marrom e gosmenta com a essência de Baldor e de Seol – e sim cristalina, que desceu ardendo em minha pele.

Queime, minha criação — a voz dele soou mais uma vez em minha mente, e assisti incrédula enquanto Midgard era queimada sem piedade, com chamas que surgiram do nada, envolvendo as duas partes de seu corpo, não deixando-a escapar.

No momento em que o fogo se extinguiu, sem deixar rastros da existência de Midgard, o fogo dentro de mim também se foi, e com ele a presença de Lúcifer, me deixando fraca e desnorteada. Caí no chão com a desolação do que fiz, e as lágrimas marrons voltaram a cair pelo meu rosto, se misturando com as lágrimas de Lúcifer.

Purson estava transtornado, e seus gritos enchiam meus ouvidos cansados. Percebi quando Alexander entrou na nossa frente, nos defendendo de um ataque vindo de uma das mulheres de vestido que rodeavam o rei. Alaor estava em um canto, a cabeçorra baixa, os olhos fixados no ponto onde Midgard existiu pela última vez.

O que eu tinha feito? Eu tinha matado uma alma animal... não importava a quem ela pertencia. Não importava que eu estava em Babel para derrubar o conselho... minha intenção nunca havia sido mata-las. Eu mesma tinha uma, e não conseguiria viver se alguém machucasse Faruk. Ou Alaor... o que me dava o direito de matar Midgard?

AlmaldiçoadaOnde histórias criam vida. Descubra agora