34 - Quando amaldiçoei um espectro

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Charlie

A luz estava diferente, mas o lugar não deveria ser tão estranho para mim. Eu passei os últimos anos da minha vida aqui, sentada ou jogada pelo chão, vomitando e gritando à plenos pulmões graças aos litros de álcool que ingeria diariamente.

Eu deveria me sentir em casa.

Mas havia algo errado.

Olhei para a janela da sala, tentando achar o que estava deslocado, o que estava fora de seu lugar. Mas tudo parecia estar como deveria.

Não parecia haver mais ninguém no apartamento. Pela cor da aurora na janela imaginei que na verdade ainda era cedo demais, e as meninas ainda estavam dormindo.

Olhei para baixo, tentando localizar em mim o que causava tanto estranhamento. Eu estava usando jeans surrados, meu único par de all-star, e uma blusa de moletom grande demais para meu tamanho de criança anoréxica.

Olhei para minhas mãos, a pele manchada pelo álcool, minhas unhas sem cuidado algum e meus anéis velhos, sentindo que algo faltava – mas não conseguia me lembrar o que era.

Antes que eu pudesse pensar mais sobre o que faltava em minha imagem de sempre, ouvi um barulho vindo da cozinha. Um surto de pânico me tomou, fazendo com que eu começasse a tremer e eu fechasse meus olhos, incapaz de olhar para quem estava vindo para a sala.

O único problema era que eu não fazia ideia do porquê eu estava com tanto medo.

─ Charlie? O que você tá fazendo aí parada feito uma idiota? ─ uma voz conhecida perguntou, me fazendo respirar o ar que eu nem sabia que tinha prendido em meus pulmões. Virei para encontrar uma Dani divertidamente parada no corredor que levava à cozinha.

Daniela!

Eu não sabia por que, mas vê-la ali me deu uma vontade enorme de abraçá-la e nunca largar. Corri para ela como uma criança que não vê a mãe há muito tempo, e a esmaguei em meus bracinhos curtos demais. Afundei meu rosto em seu pescoço, sentindo seu cheiro familiar.

Eu estava em casa!

─ Charlie... ─ ela riu, me abraçando de volta ─ menina, para com isso. Você está me assustando... o que foi? Bebeu demais outra vez e não conseguiu dormir?

Eu nem percebi quando comecei a chorar e soluçar em seus braços.

─ Ah Dani... ─ eu não sabia o que dizer. Por mais que eu devesse me sentir ofendida pela sua suspeita. Eu nem sabia o que estava acontecendo. Algo ainda faltava. Ainda era estranho. Mas nada disso importava. Minha melhor amiga estava comigo.

─ Vamos... vamos... senta aí. Quer alguma coisa? ─ ela começou a me arrastar para a cozinha, me sentando numa das cadeiras da mesa de jantar. Eu não queria largá-la, era como largar algo conhecido, amigo, seguro. Mas resignadamente sentei e a observei ir para a geladeira.

─ Vou fazer uma vitamina para você, tudo bem? ─ ela perguntou, sem olhar em meus olhos, mas já com a mão na massa, pegando o liquidificador e separando algumas frutas. Não cheguei a estranhar seu comportamento, mesmo que algo dentro de mim dizia que Daniela não faria uma vitamina para mim logo pela manhã – principalmente se ela suspeitava que eu havia bebido a noite inteira.

Eu dei mais uma olhada pela cozinha, incomodada com a sensação que ainda tinha de que algo estava errado – terrivelmente errado.

Observei minhas mãos enquanto ouvia o barulho do liquidificador. Elas pareciam as mesmas de sempre. Esqueléticas, tremendo.

Daniela colocou um copo enorme de vitamina colorida na minha frente, com um canudo verde – não faço a menor ideia de onde ela tinha tirado aquilo – e ficou me olhando, esperando que eu desse um gole. Sorri para ela e me inclinei, abaixando um pouco o canudo e tomando a melhor vitamina do mundo.

AlmaldiçoadaOnde histórias criam vida. Descubra agora