Tudo começou a um mês atrás quando o Avô notou minha presença, afinal, em meio a tanta bebida e, acredito eu, drogas, era difícil perceber algo além do seu próprio ego. Ele ficou me encarando enquanto eu, sem sucesso, tentava fazer a bebê de cerca de três meses calar a boca.
— Essa menina, já é muito mulher. Por que a gente tá gastando com ela se a gente podia tá lucrando? — Naquele momento todo meu corpo congelou, eu tinha recém me formado no colégio e não tinha nenhuma ideia do que eu ia fazer, ser obrigada a me prostituir não tinha passado pela minha mente até porque eles nunca tentaram antes, eu achei que não fariam isso e sempre que isso passou em meus pensamentos, eu juro, quis morrer.
— Ela é das boas, ninguém nunca encostou, a Mama deixa ela fazer o que quiser, então obrigar nós num pode. — Disse o nojento do Tio enquanto piscava pra mim e me olhava como se eu fosse uma medalha que ele queria colocar no pescoço.
— Verdade, obrigar a gente não vai, mas incentivar isso a gente pode. Vou achar algo bom pra você, minha pureza. — Concluiu o velho rindo como se fosse a piada do século.
A semana foi passando e eu, crente que isso havia sido esquecido, continuei com a minha vida, mas numa manhã eu fui abordada por uma das propostas mais inacreditáveis que já tinha ouvido desde então.
— O parasita mudo! Ouve isso e pensa bem. Pra você não dizer que seu avozinho aqui não se importa contigo, eu arrumei algo fino pra ti. — Ele disse enquanto alisava meu rosto. — Um amigo da família sabe de um contato que vende esposas para os ricaços, isso mesmo, puta com sobrenome. Se tu quiser, ele vai botar uma foto tua lá. O dinheiro é uma bolada, você recebe um tanto antes que fica com a gente, e recebe o resto depois, que como você não vai precisar, você manda pra gente também.
Sem pensar duas vezes eu o mandei a merda, baixo, pois se gritasse era capaz de levar uma bela surra. Ele sorriu e me mandou pensar com carrinho. Eu fiquei por dois dias pensando com "carinho" em como meter a mão na cara dele sem ser punida, como cheguei à conclusão de que ele não valia os meus pensamentos, deixei para lá.
Hoje parecia um dia como outro qualquer, já era nove da noite e eu estava exausta. Desde que as férias escolares começaram, á três dias atrás, minha vida tem piorado gradativamente.
Eu odeio as férias, pois quando tem escola as crianças comem lá, elas passam grande parte do dia lá, agora minha rotina está um caos. Eu acordo bem cedo para estudar, afinal é o único momento de silêncio que eu tenho, quando olhei no armário e percebi que só tinha um pouco de fubá, misturei com água e açúcar e como era pouco dei todo para as crianças, às onze eu já tinha saído para chegar ao trabalho que fica a três horas a pé de distância, o que fazia com que eu pulasse o almoço sempre.
Pelo menos os nojentos sempre estão fora, fazendo as merdas deles, mas isso significa que eles não compram comida pra casa. Porém, entre morrer de fome e conviver com eles, a primeira opção é uma benção.
Por sorte eu trabalho numa barraquinha de lanche, assim eu posso comer todo dia, entretanto tudo que eu como é retirado do meu curto pagamento.
Por volta das nove da noite eu só penso em ir para casa, e quando estou quase saindo me deparo com três crianças magras, cansadas e sujas.
— O que vocês estão fazendo aqui? Vocês vieram sozinhos até aqui nesse horário? — Só podia ser brincadeira, o tamanho do perigo e o quanto eles andaram é imensurável para crianças de oito, seis e quatro anos.
— Desculpa, é que a gente tá com fome, a Duda até choro e aí eu não sabia o que fazer e vim aqui. Quando a gente saiu tinha sol, eu prometo. — Diz o mais velho enquanto os mais novos atarracam na minha perna, como vou brigar com essas coisinhas, vou até a barraca, pego um lanche e divido para eles, quando termino de limpar as coisas meu chefe me chama.
— Olha Celina aqui tá o dinheiro do mês, a partir de amanhã não precisa vir mais não. — Eu estou em choque, sem esse dinheiro como vou comprar o pouco que consigo, meus olhos enchem de lágrimas e quando vou argumentar ele continua. — Eu gosto de você de verdade, mas você me dá prejuízo e além do mais vou por minha menina mais velha para me ajudar, vê se sobra um tiquinho a mais lá pra casa. Se eu souber de alguém que tá precisando eu vou indicar você, vai em paz viu.
Eu nem consigo chorar, entre revezar carregando crianças no meio da noite, poder ser assaltada a qualquer momento e não ter mais nada com que contar; eu só continuo andando em silêncio. Sinto como se tivesse ar para todos no mundo, menos para mim.
— Dona Bete! — Chamo baixo por conta do horário, passa da meia-noite quando chego na minha rua. E logo vejo, saído com uma cara de sono e toquinha na cabeça, dona Bete, com uma bebê adormecida nos braços.
— Veja bem, eu não posso fazer mais isso pra você, essa menina não é minha. Eu tenho de amamentar o meu bebê, eu sei, mas eu não tenho condição de criar os dos outros também. Eu não faço vista grossa e se eu tiver eu vou dar, mas meu marido levanta parede o dia todo pra por comida na mesa, eu não posso tirar da boca dos meus meninos Celina pra dá pros seus.- Ela diz calma e com peso no coração devido a suas palavras.
— Eu entendo e agradeço, obrigada por cuidar da Isa e amamentá-la também. — Me despeço e sigo para casa, dou banho nas crianças, entro no nosso quarto trancando a porta.
— Todo mundo quietinho que é hora de nanar. — Digo mais aos meninos já que Duda está desmaiada no seu lado do colchão.
— O Linina, obrigada por cuidar de mim, eu amo você. — Sussurra o mais velho me abraçando, eu digo para ele o quanto o amo também, ele foi a primeira pessoa que disse que me amava e eu jamais vou esquecer disso.
— Ora comigo.
— O que você quer pedir para o Papai do céu hoje?
— Papai do céu, obrigada pela comida de hoje, se o Senhor puder, diga a minha mãezinha que sinto muito a falta dela e que quero que ela venha me ver... — Me desligo no meio de suas palavras, me lembrando de quando elas eram minhas, de quando pedia pra moça do guarda-chuva florido voltar e me buscar. Eu quero muito que os pedidos do Luizinho sejam ouvidos. — Amém.
— Amém.
O que eu vou fazer agora meu Deus? Ver essas crianças morrer de fome? Eu não posso.
O dinheiro que eu tenho não vai dar para um mês e com a chegada das férias não posso deixá-los sozinhos aqui nesse hospício para trabalhar o dia todo, Deus sabe que não posso.
Muitas meninas arrumam alguém para poder sair de casa, mas na minha situação, quem iria me querer? Sei que poderia ser uma bela mulher se as condições fossem outras, mas magra de fraca, com o cabelo encaracolado castanho quebrado, a pele morena apática e para ajudar quatro crianças de brinde. Sem condições.
Quando vou fechar meus olhos, ouço a bebê começar a chorar e começo a chorar junto, afinal não tem como negar a realidade e quando ela bate geralmente é sem dó. Terei que aceitar a proposta do bicho ruim, pois assim pelo menos quem sofre sou apenas eu. Quatro por uma me parece promissor e não é como se eu tivesse um futuro tão bom assim, não com o perverso do Tio vindo checar todas as noites se a porta está trancada.
— Avô, eu aceito a proposta. — Quando digo isso sinto que eu estou me condenando pela segunda vez, afinal condenada eu tinha certeza que sempre fui.
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Comprada sem razões
RomanceCelina é uma menina, que muito cedo deixou de ser criança, sem pais, deixada a mercê de uma mulher questionável na infância, teve que aprender a sobreviver chamando o mínimo de atenção possível. Ela não teria porque ficar ali se não fosse as demais...