Capítulo 2

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Sempre soube que eu era diferente, ou melhor, privilegiada nessa casa. As outras garotas e às vezes até garotos que passavam por aqui tinham uma função, servir a demanda da Mama. Como eu nunca se quer fui levada onde as coisas de fato ocorriam, não posso deixar de crer que sou "diferente", mas a grande questão é, por quê?

Quando o Avô falou com a Mama ela se irritou e graças a isso, eu pude ouvir parte da conversa, algo que por sinal não fez o menor sentido. A Mama só se aquietou depois de saber o valor que eles iriam receber, então ela deixou algo escapar "isso é muito mais que a mesada", palavras dela, que mesada? Seria o auxílio do governo? Acredito que não, pois quaisquer cem reais já é maior que qualquer auxílio do governo.

O tempo passou e ninguém tocou mais nesse assunto. Antes de sair dessa espelunca eu vou ter que tirar isso a limpo, se não vou acabar me corroendo pela curiosidade.

Dito e feito, eu fui "adquirida", isso é tão escroto que eu não sei o que pode me ocorrer na vida para que eu me afunde mais na lama, mas como uma boa brasileira que sou não vou dizer isso em voz alta, pois se há algo que aprendi é que basta a gente dizer pra agourar de vez.

Quando eu achei que já tinha sido humilhada o suficiente, a vida me traz essa.

Quando o Avô recebeu a ligação de seu amigo, todos os três começaram e rir e gritar me chamando de nomes ofensivos e o pior foi quando tive que ouvir do Tio "Não é que teve algo de produtivo ser proibido de abrir as pernas dela". Eu me senti como uma coisa suja que ninguém deseja o bem, que estava sozinha e que sempre estaria.

Mais uma vez eu desejei que alguém, qualquer um, se importasse comigo para que de alguma forma eu começasse a me importar também.

O carro chegaria às dez da noite para me buscar e eu tinha só duas horas para terminar de me preparar. Comecei pela parte fácil, visto que já tinha conversado com a dona Bete a respeito dos acontecimentos anteriores, fui até lá para me despedir apenas.

— Estou indo, e conto com a senhora dona Bete para proteger e criar as crianças. — Digo olhando em seus olhos chorosos.

— Pois vá em paz, menina, se for essa a razão da sua angústia, saiba que vou criar esses quatro dando de tudo que eles precisarem. — Ela me puxa para um abraço e diz. — E daqui eu vou cuidar de você também, porque não vai ter um dia que você não vá estar em uma oração minha.

Eu caminho até em casa chorando aliviada. Bete é a melhor pessoa que conheço e com o dinheiro que irei mandar lhe entregar sei que ela poderá prover tudo que as crianças precisam e ainda cuidar da sua própria família. Pelo menos, por poder ajudar ela, esse dia está sendo um pouquinho feliz.

Toda essa felicidade acaba quando eu chego na casa e me lembro do que terei que fazer, respiro fundo, vou até o quintal e grito por Luiz.

— Eu! — Ele vem sorridente e se senta na minha frente, com as perninhas de índio e o rosto apoiado em ambas as mãos. Observo tudo para memorizar cada pedacinho dele, desde os olhos quase pretos ao cabelo encaracolado e os pés descalços.

— Quero que me ouça e seja forte. — Eu começo seriamente.

— Fiz nada de errado não Leninha... Fiz?

— Claro que não, meu bem, quero conversar sério e te pedir para sempre ser bom e ajudar seu irmão. Qualquer coisa que você precisar você vai pedir a Bete, ela vai cuidar de vocês.

— Com que dinheiro? A Bete é pobre que nem nós.

— Eu vou embora hoje, para trazer o dinheiro e vou mandar pra Bete, entende? — Eu sei quando ele começa a entender, é no exato momento que ele começa a chorar, ele não diz nada, simplesmente se levanta e me abraça.

Comprada sem razões Onde histórias criam vida. Descubra agora