Kamikaze

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1. Vento de Deus; Ato suicida.

No dia seguinte...

    Havia acabado de afastar minhas pálpebras uma da outra e já senti o vômito beirando minha garganta, subindo rapidamente e indo parar na boca, arregalei os olhos desesperada tentando me levantar e andar, mas com dois passos meu corpo sucumbiu, ajoelhei no piso quente e involuntariamente um líquido amarelado espalhou-se pelo chão, permaneci naquela posição durante alguns minutos até terminar. Nunca bebi muito, as ressacas que tive eram leves e resultavam em um latejar inconstante dentro da minha cabeça, porém aquela havia se superado, minhas entranhas reviravam-se e a enxaqueca parecia comprimir meu cérebro como um espremedor faz com a laranja. Inácio me olhava em cima da cama, já que havíamos dormido juntos.

-Não desce! - Ordenei passando meu pulso pela boca tentando limpá-la.

Miaaaaau, miauuuu, miaaau

    Ergui-me e ultrapassei o vômito espalhado, fui andando até a área de serviço meio tonta e fraca, depois voltei para o quarto com alguns materiais de limpeza e fiz o que ninguém além de mim mesma faria, ajeitei aquela bagunça. Meu gatinho ficou apenas observando minha face que com certeza estava pálida e lambia uma das suas patinhas peludas. Assim que terminei fui em direção ao banheiro me arrastando segurando a borda das paredes, senti-me doente e não conseguia pensar direito, só de tentar minha cabeça doía.
    Apertei o interruptor, o que fez a luz clarear o ambiente e adentrei o mesmo me inclinando desleixadamente sobre a pia, abrindo a torneira e pondo a cabeça embaixo d'água, molhando meu rosto e meus cabelos. Levantei fazendo a água cessar logo em seguida, fite-me pelo espelho e vi aqueles fios pretos colados na minha testa que escorriam pela nuca e respingavam  no tapete verdinho. Haviam duas dobrinhas debaixo dos meus olhos que pareciam olheiras fraquinhas sem colorações escuras, mas destoava um pouco do meu tom de pele e meus lábios estavam ressecados, provavelmente eu precisava beber algo, de preferência água. Liguei a torneira novamente, fiz das minhas mãos um copo e me hidratei, o que resultou a volta da coloração deles e o meu amarelado natural retornou.
    Era sábado de manhã, minha mente estava pifada e era melhor não mexer no fogão, com a energia que estava não me faria bem cozinhar e a comida sairia ruim, então coloquei um conjunto moletom que era cinza e largo, coloquei um óculos escuro, meu boné preto que estava jogado no fundo do armário e calcei uma sandália de dedo qualquer. Não era rotineiro vestir-me desleixadamente, sempre gostei de estar bem vestida e arrumada, mas sinceramente, naquele momento não queria parecer comigo, queria ser outro alguém, de preferência uma pessoa menos idiota e tola. Subi o zíper do casaco, apanhei a coleira arco-íris que estava marcada por pequenos dentinhos que eu sabia muito bem de quem eram, logo prendendo no colarinho de Inácio, abri a porta e descemos as escadas.
    Do lado de fora estava frio e o Sol se fazia presente, no entanto, não estava esquentando o quanto deveria, pude sentir meus ossos doerem por conta da temperatura. Meu gatinho parecia confortável e ao contrário de outros bichanos ele amava colocar as patinhas no chão e saltitar por aí, às vezes Inácio parecia um cachorro no corpo de um gato, adorava tomar banhos gelados, passear e principalmente grunhir para estranhos. Caminhamos até chegar na lojinha de Giovanni que estava recostado na mesma cadeira de sempre, penteando os cabelos grisalhos da sua esposa que estava sentada num banco de costas para ele.

-Bom dia! - Disse tirando o capuz da cabeça e enfiando as mãos dentro dos bolsos.
-Aurora! Que bom te ver! Bom dia. - Giovanni cumprimentou-me.

    Adrijana forçou seus olhos na minha direção pensativa e depois se virou para seu marido sussurrando algo no seu ouvido, a lancei um sorriso enquanto me fitava.

-Essa é a Aurora, uma amiga minha. - Ele a lembrou.

    Aquela cena era comum, ela quase nunca se lembrava de mim por conta do Alzheimer. Certa vez quase um jarro de flores foi atirado na minha cabeça, porque Adrijana jurava que eu era uma ex-namorada de Giovanni, mas no fim não me machuquei e ela se tranquilizou quando fui embora. Porém, as piores vezes são quando ela acha que sou sua falecida filha e por dó sempre finjo ser, porque é uma situação tão triste.

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