Peremptório

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1.Que permite; que se consegue colocar fim; que tende a se extinguir ou terminar. Que é determinante; que define; definitivo ou decisivo.

-Você está pronta? - Pierre questionou com os olhos penetrados sobre a minha figura esperando uma resposta.

Eu conseguia ver as gotículas de suor ameaçarem cair dos rostos dele e de Pandora que também me fitava aguardando, Inácio dormia no canto da sala esparramado no chão de boca aberta e língua de fora, o calor de Roma não perdoava ninguém e eu me perguntava se havia sido uma boa ideia mesmo fazer isso logo hoje, logo nessa data.

-Aurora, você está bem? - Ele indagou novamente quase soltando a maçaneta.

-E-eu estou sim. É só que... Não tenho mais certeza se é uma boa ideia. - Retruquei finalmente, sentindo minha voz falhar e o choro parar na garganta.

-Vai ficar tudo bem. Pierre e eu estamos aqui com você! - Pandora disse na esperança de me tranquilizar, lançando a mim um semblante amável.

-Você não precisa fazer isso se não quiser, nós vamos entender.

Eu sabia que entenderiam. Eu sabia que ficaria tudo bem. Eu sabia que eles estavam comigo. Mas e se de repente não entendessem mais? Ou se caso não fique tudo bem? Ou se eles não estivessem mais comigo? Era tudo muito incerto e eu precisava resolver pelo menos essa parte da minha vida, superar o insuperável.

-Na verdade, eu preciso sim. - Respondi girando a chave pequenina e dourada de detalhe vermelho feito de esmalte, escutando a porta se destrancar e de leve se entreabrir.

A luminescência tomou conta do quarto e me cegou momentaneamente, de imediato senti aquele cheiro... Aquele que me lembrava ele... De erva-cidreira e café sem açúcar. Eu não queria tornar aquele momento dramático, por mais que ele por si só fosse. Tudo estava no seu devido lugar quando voltei a ver com clareza, a cadeira afastada do buraco da escrivaninha, os papéis espalhados sobre ela e a xícara vazia com um saquinho já murcho e cheio de formigas, a mancha de molho de tomate na doma reserva, a estante de receitas semi organizada e os lençóis de cama arrumados. Nem mesmo ele sabia que iria morrer, duvido que se soubesse tivesse deixado suas coisas desorganizadas, já que meu pai odiava ter que me incomodar com as suas coisas e eu adorava cuidar dele.

-Faz quanto tempo que você não entra aqui? - Pierre indagou adentrando o espaço com cautela.

-Desde que aconteceu. - Respondi.

Caminhei até o guarda-roupa e abri o limiar, uma massa pesada de poeira se fez no ar e por consequência nós três espirramos diversas vezes. A blusa creme de botão com tecido pesado que ele gostava estava presa no cabide afastada das demais, era isso que ele fazia antes de usar uma roupa, provavelmente meu pai havia planejado vesti-la no dia depois que tudo aconteceu, eu nunca ia saber. Quando comecei a retirar as peças de dentro, as deixei sobre a cama e fui dividindo em dois núcleos: as que eu guardaria e as que iriam direto para à venda.

-Seu pai tinha estilo - Pandora comentou encarando uma foto revelada e pregada na parede de Inácio vestido com uma jaqueta e uma calça de couro sintético com as mãos na cintura olhando para o lado enquanto sorria. -Vejo de quem puxou isso.

-Na verdade, ele era bem brega. - Falei rindo em seguida. -Essa foto tem mais de trinta anos, eu nem havia nascido ainda. Depois que foi ficando velho, ele parou de usar roupas assim e eu vivia brincando com ele, dizendo que a época dele havia mesmo passado e que agora parecia um guia de retiros espirituais. Mas nós dois concordavamos que Francis se vestia pior.

-O meu pai se veste igual a um professor inglês, isso sim é estranho. - Pierre comentou apanhando a xícara e saindo do quarto gargalhando só.

Inácio teria gostado de saber que tenho amigos, ele sempre quis que eu me enturmasse e fosse como ele, rodeado de pessoas que o admiravam e o queriam bem, só que sempre fui mais na minha, não me era ruim estar contemplando a solitude. Mas o meu pai insistia que eu não ficasse "sozinha", me forçando a fazer amizade com os filhos dos seus amigos e eu como uma boa criança me trancava no quarto. E ele odiava essa minha atitude, não brigava, mas pedia que fosse mais sociável e que tentasse olhar pela ótica dele. Me tornei amiga de Celine quando mais nova, só para ter alguém para convidar para o meu aniversário e ver meu pai feliz por ver a filha ter outro alguém especial que não fosse ele.

-Ei, você! Quer ir na minha festa? - Recordo de perguntar isso para ela que estava sentada perto do parquinho, de calça branca e blusa de frio laranja.

-Vai ter bolo? - Nenhuma de nós sabia sequer o nome uma da outra, mas aquela parecia ser a única objeção dela.

-Vai, o meu pai cozinha. - Na época eu usava uma sandália menor que meu pé que deixava meus dedos quase que arrastando no chão e um vestido estranho que Francis havia me dado de presente.

-Tá, vou falar com os meus avós. - E foi assim que ela marcou presença na minha festa, comeu o bolo quase todo, dormiu na minha casa e virou minha melhor amiga, sem saber o meu nome.

Inácio ficou contente com a nova amizade e se calou diante da decisão que tomei no passado de ir embora sem comunicar Celine, ele gostava da companhia dela, sabia que eu a via muito mais que uma simples amiga e que ir sem dizer "adeus" me destruiu. Meu pai era tão incrível que mesmo sabendo de tudo bem antes de mim, nunca invadiu meu espaço ou me arrancou do armário, só se mostrou todas as vezes aberto a tudo e qualquer assunto que eu pudesse precisar dele. Foi tão bom contar para o meu pai que eu era lésbica que se ele estivesse aqui, eu diria sem medo que, na verdade, recentemente me descubri bissexual, sem hesitações.

-Os papéis, posso jogá-los no lixo? - Pandora perguntou com um saco azulado na mão.

-Não! - Respondi de imediato. -São as receitas dele, não joga fora!

Ela assentiu com a cabeça e juntou todas as folhas, organizando-as e as deixando em cima da cama para que ela e Pierre pudessem descer a escrivaninha. Fiquei sozinha no quarto terminando de esvaziar o guarda-roupa e levando as coisas que iríamos vender para a máquina de lavar que rodava sem parar e fazia um barulho bizarro que acabou acordando Inácio. Eu acabei encontrando em meio dos livros de receita da estante uma breve carta do meu pai escrita para mim no meu primeiro dia de aula, talvez eu tenha puxado isso dele.

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