Polinóia

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1. A repetição compulsiva de um ato como forma de melhorar a sua execução.

-E-eu já sei que você não vai mais voltar... - Dei uma pausa tentando assimilar tudo. -Então é verdade que vocês anteciparam a data do casamento? - Perguntei esperando a resposta do outro lado da linha.

-É - sua voz estava fraca e ao fundo uma música soava no rádio. -Ele acha que não tem porquê esperarmos tanto - Celine prosseguiu.

-I-isso é bom, significa que se entenderam e estão bem. - Comentei fitando Inácio deitado sobre o sofá.

-Exatamente...

-Ok, mande notícias - intervi no fim da sua fala, distanciando de leve o telefone da minha orelha.

-Aurora, posso te fazer uma pergunta? - Assim que escutei aquilo cruzei meus braços e mordisquei meu lábio inferior.

-Claro - retruquei sentindo meu coração palpitar.

-Está tudo bem? Digo, você, como está? - Ela indagou abaixando o volume da sua voz que de repente ficou um pouco abafada.

-N-não, não estou chateada, se é isso que quer saber. Está tudo bem. Estou feliz por vocês. - Segurei o choro que já beirava minha garganta. -A sua vida estava uma bagunça e você só está colocando as coisas no lugar, certo? - Questionei-a limpando o canto dos meus olhos.

-E-e quanto a nós? - Aquele mezzosoprano falhou, talvez eu não fosse a única magoada com aquela situação.

-Está tudo bem com nós duas, não se preocupe com isso, Cê.

-Você tem certeza? - Ela insistiu em seguida limpando sua garganta.

-Só peço que me escreva e que não se esqueça de mim... - Era inevitável disfarçar as lágrimas. -Por favor.

-E-eu te amo.

-É, eu também.

Desligamos repentinamente como se fossemos duas estranhas que haviam se ligado por engano. E parecia ter sido ontem o dia em que estávamos aqui. Aqui no meu apartamento com Celine reclamando do cheiro de cigarro espalhado pela casa enquanto trocava a lâmpada da sala e eu, permanecia sentada sobre o tapete, separando os CD's e fumando. Me pergunto como tudo passou diante dos meus olhos tão vorazmente quanto um trem-bala sem que eu percebesse...

Aqueles dias. Ah aqueles dias... Eles foram sem dúvida os nossos melhores. Você, Celine, estava mais radiante do que nunca. Te ensinei cuidados básicos com as minhas, ou melhor, nossas, plantas de estimação. Cozinhamos juntas, o que foi bem engraçado, porque você não fazia ideia da diferença entre uma fôrma e uma simples frigideira. Os seus serviços voluntários arrumando as coisas que eu não entendia nem um pouco, como por exemplo, a fiação principal do apartamento - foi engraçada a cara que você fez ao ver os fios embolados uns nos outros e até mesmo alguns que estavam no lugar errado. Mas o melhor de tudo era quando você me observava de longe com a xícara - que você achou mais bonita - em mãos, tomando um chá de maçã, enquanto eu estava sentada desleixadamente em frente a mesa da sacada com os óculos velhos do meu pai, corrigindo as provas trimestrais da faculdade. Os beijos inesperados também me fazem falta, além do seu corpo que me acompanhava todas as noites, fossem elas quentes ou gélidas, mas ele também estava lá, em todo banho, esses que você odiava as altas temperaturas, porém nunca recusava um convite. Os lençóis ainda têm o seu cheiro, não importa quantas vezes eu os lave. E me causa insônia saber que você foi e que eu te deixei ir. Deixei aqueles dias virarem poeira cósmica na finitude da nossa memória...

Eu lembro de estarmos no banheiro tentando banhar meu bichano peralta que insistia em querer morder o sabonete, quando o telefone tocou. Não fui rápida o suficiente para aconselhá-la que não atendesse, pois ninguém sabia que ela estava aqui, mas assim que me dei conta Celine já dizia "alô" na sala. Eu corri até lá mesmo cheia de sabão nos joelhos, mãos e cotovelos, chegando já vi o desespero nos seus olhos negros, com a boca meio tremula e semi-aberta ela segurava o objeto com força contra sua orelha. Me apressei, escorregando pelo piso e ouvindo Inácio miar alcancei o telefone.

-Alô? Oi, Celine, é você? - Era a voz de mamãe. -Ôh céus, como é bom saber que você está bem. Ela está bem - Francis repetiu ofegante para alguém, possivelmente o Fergus e que estava possivelmente ao seu lado. - Onde você está, querida? O Fergus e eu estamos preocupados.

-Oi, mãe, sou eu a Aurora - respondi com as unhas entre os dentes de nervosismo.

-E-eu não acredito que - ela deu uma pausa, parecia estar brava. - Fergus, eu já volto ok? - Ouvi um som de passos, provavelmente mamãe havia se afastado dele. -M-mas o que diabos vocês acham que estão fazendo?

-Francis, eu posso te explicar.

-Eu acho bom e espero que faça sentido! - Ela estava furiosa.

-Muito bem. Celine e eu... - Eu ia falar, juro que ia.

-Eu já sei, filha. - ela sussurrou baixinho.

-Mas como? E-eu fiquei com medo de te contar.

-Com razão. Estou decepcionada, com as duas - Francis enfatizou esse final. - Não é justo com ele... - Um sussurro escapou das suas cordas vocais.

-Nós temos noção disso.

-Será que têm mesmo? - Minha mãe cortou minha fala.

-Francis...

-Passa o telefone para ela! - Ordenou num cochicho.

-C-como ela está? - Antes de obedecer ela escutei a voz rouca e baixa de Fergus indagar ao fundo.

Eu distanciei aquele aparelho de mim e estendi minha mão na direção de Celine para que ela o apanhasse, de cabeça baixa não conseguia fitá-la nos olhos, não estava nos meus planos receber aquela ligação.

-O-oi - Celine falou se virando de costas para mim e apoiando na estante ao lado. -Eu não sei se quero falar com ele. Ok, Francis, vou fazer isso. - A ouvi dizer ao outro lado da linha.

Repentinamente ela se virou para mim, me olhando sem jeito vi aqueles mesmos lábios que me afagavam me pedirem para que fosse dar uma volta por aí. Eu catei Inácio ainda sujo pelo braço e sai.

Mais tarde naquele mesmo dia quando voltei para casa vi Celine sentada na poltrona de papai abraçando seus joelhos. E enquanto as lágrimas escorriam pelos seus olhos gentis ela encarava o nada, perdida mais uma vez.

-Você está bem? - Perguntei ainda de longe colocando o gatinho ensaboado no chão.

-Aurora! - Assustada ela limpou seu choro rapidamente com as mangas da camisa. -E-eu estou bem - sua voz estava mais serena.

-Quer conversar? - Questionei indo na sua direção.

-Não. Agora não, não é a melhor hora. - Celine pareceu se afastar quando viu que eu me aproximava. -Quero ficar um pouco sozinha, tudo bem?

-Francis tem razão - comentei.

-O quê? - Celine indagou sem entender.

-Você deve explicações a ele, Fergus parece estar preocupado, Celine. Se você ainda está aqui, porque acha que vou me chatear, você está errada. O melhor a se fazer agora é voltar para sua casa e arrumar uma solução para tudo isso. É a sua vida e eu não vou intervir nela. Essas são as suas coisas.

-Você tem razão... - Ela falou fitando o chão.

-Eu vou pegar suas malas, você pede um táxi. Temos que te colocar no primeiro avião para Wellington.

E foi assim que os nossos dias se tornaram apenas lembranças efêmeras e voláteis que agora murcham no nosso jardim da memória, na esperança de adubar nossas ideias e fazer renascer mais tempos como aquele. Onde eu não era um enigma secreto e sim, o espetáculo principal, mesmo que fosse apenas naquelas quatro paredes quando estávamos só nós duas e nossas juras de amor. Mas eu aceito essa situação atual, porque você é a minha melhor recaída de bebedeira e eu sou o seu segredo de verão.

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