Arguto

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1.Que tem facilidade em perceber a sutileza das situações.

Eu esperei. Eu esperei todos os dias da semana a chegada do carteiro. O silêncio e ao mesmo tempo aquelas palavras, aquelas mesmas palavras que diziam "é engano" infernizavam a minha mente e me geravam fortes enxaquecas. Não aguentava mais fitar o telefone agarrado ao gancho e não conseguir discar a sequência numérica que estava decorada no armazenamento interno imaginário da minha cabeça. Era ruim me sentir deixada de lado, tudo havia sido tão bom, mas de repente eu não tinha mais certeza de nada, estava insegura e sem você mais uma vez. Sem respostas... Sem ligações... Nem se quer um pequenino pedaço de papel arrancado de uma página qualquer de qualquer caderno, diário ou agenda enviado às pressas pelo correio. Nenhum rastro daquela ortografia, que eu me esforçava para entender os garranchos tortos sobre a linha. Simplesmente nada, nenhum sinal seu, apenas silêncio. Havíamos voltado para a estaca zero, sem contato, mas dessa vez tínhamos algo a mais, lembranças românticas e sexuais marcadas nas nossas carnes, enraizadas nos nossos ossos e registradas na alma. E o meu querer não havia se esvaído subitamente entre os espaços dos meus dedos como as flores envelhecidas do túmulo do meu pai. O interesse ainda vivia dentro de mim e eu o ressuscitava sempre que me recordava de você. Me odiava por ter causado tudo isso.

-Aurora! Alooô! Terra te chamando! - Era a voz abafada de Pandora do outro lado da linha. -Você ainda está me escutando? - Ela indagou duvidosa.

-É... Oi, eu estou aqui sim... E-eu perdi o foco... Inácio derrubou a vasilha de ração na água - inventei qualquer coisa.

O bichano louro me encarou com a cabeça caída de lado enquanto lambia a água intacta do pote - se ele falasse me desmentiria na hora.

-Você vem no show de estreia do Pierre, não vem? Ele está aqui em casa perguntando sem parar de você enquanto vomita no vaso.

-Isso foi muito específico, Pandora. - Falei rindo enquanto realmente ouvia de fundo o vômito colidindo com a água do sanitário. -É óbvio que eu vou. Tente deixá-lo menos ansioso, ele é um bom músico!

-Ouviu? - Ela indagou com a voz um pouco longe do aparelho. -Pare de passar mal e vá ensaiar, você é um bom músico! -Ok, Aurora, nos vemos mais tarde!

-Até lá! - Respondi com o telefone contra minha bochecha, encerrando a ligação em seguida.

Pierre iria oficialmente voltar a tocar com sua antiga banda hoje e havia me feito prometer que o veria tocar, como um gesto de gratidão por ter me ajudado a superar mais um dos aniversários de Inácio. Depois daquele dia eu realmente estava tentando seguir em frente e com sucesso. Era inevitável acordar e não lembrar dele, porém doía menos, parecia uma ferida recém cicatrizada que ao encará-la só restavam lembranças. Os móveis haviam sido mudados de lugar, o apartamento aparentava ter mudado de dono, mas era só eu, passando por mais uma fase do luto. Os remédios estavam sendo tomados de acordo com a prescrição médica - como deveria ter sido desde o início -, havia dias onde era impossível permanecer acordada, eles me derrubavam como um touro bravo ao ser sedado com um dardo fino e leve na nádega direita.

Muitas pessoas acreditam que os medicamentos contra a depressão te fazem parar de ter pensamentos suicidas ou melhoram seu humor, isso é uma MENTIRA DO CARALHO! Não funciona assim, ou pelo menos não exatamente da forma como elas esperavam. Quando retornei a consumí-los lembrei do porquê sempre os tomava acompanhada de uma taça de vinho, pelo simples fato de que fico idêntica a um zumbi: perdida e lenta. Se assemelha a uma crise de dissociação. No primeiro dia foi desesperador me sentir daquela forma, desconectada do mundo e mais avoada do que o normal. A nicotina e o efeito alucinógeno da cannabis tem me ajudado a passar por isso. Só que seria 50% melhor prosseguir com a terapia, porém Antonella não quer saber de mim.

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