Capítulo 15: Amanda

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       O balanço da carruagem me enjoava. Rosemary estava deitada em minha perna, e Marcus estivera em silêncio por boa parte da viagem. Não devíamos estar muito longe da saída da floresta, logo estaríamos em casa.
       Casa. Eu não sabia o que era casa.
       Eu conheci um inferno com o apelido de casa. Nem ao menos sabia o que iria acontecer quando chegasse em Millandus, embora Rose tivesse prometido para mim que cuidaria daquela pendência.
        No fundo, não gostava de parecer fraca e depender dos outros para me defender, como no deserto de Rubria, quando Rose se arriscou para que eu entrasse no posto de vigia.
        Olhei para ela. Seus cabelos negros estavam para trás, me permitindo visão do seu lindo rosto. Ali, Rose parecia tão delicada quanto uma flor, mas apenas eu e Marcus sabíamos da garra que ela tinha.
         Eu queria ser igual a ela, ter estômago para matar pessoas e conviver com isso, entretanto, para mim era difícil até presenciar o abate de um animal para comermos.
         Meu pai cuspia isso sempre em minha cara, me chamando de fraca e sem utilidade nenhuma. Mas o que podia fazer?
         Toquei meu rosto e ainda o senti dolorido. Mal acreditava que Rose havia me visto daquele jeito. Naquele dia, meu pai me batera simplesmente por eu negar o recrutamento para Santificadas.
          Eu ainda não conseguia entender o motivo por trás daquilo tudo, minha mãe nunca quis me dizer, sempre evitava ser questionada.
         Lembro de ter visto uma marca em suas costas, um tipo de tatuagem que nunca vira, e quando perguntei, minha mãe mais uma vez se esquivou das perguntas e procurou algo para fazer.
         Seu choro veio a minha lembrança. Todas as vezes que ela sabia que meu pai me espancaria, minha mãe se trancava no quarto e chorava de desespero por não poder fazer nada contra.
         Na primeira vez que a vi chorar, foi em um hospital, quando meu pai quase me matou de tanta pancada. Traumatismo craniano e nariz quebrado, quase perdi um ano de estudo naquela época.
        Quando questionado, meu pai dissera que caí da escada, com todo cinismo que ele tinha. Os Santificados acreditaram em sua palavra e tudo caiu no esquecimento.
         Me lembrando de como Rose lutou naquele palácio, decidi para mim mesma que faria algo contra meu pai, e não o permitiria tocar em mim novamente.
        Só não tinha certeza em como iria me sentir depois de revidar. Porém, não iria desistir, meu pai teria aquilo que merece.
        Chegamos na fronteira entre Millandus e Liceo. Senti a diferença de temperatura e respirei fundo, matando a saudade do ar fresco e mais frio.
        Marcus continuava em silêncio, algo passava em sua mente, não era nada bom. Minha amizade com o herdeiro da casa Infeor permitia que eu conseguisse saber quando ele não estava bem.
        Não iria adiantar perguntar, Marcus sempre foi muito fechado com seus pensamentos, não gostava de compartilhar eles em momento algum, mesmo que fosse para mudar uma sentença de morte, e era isso que o fazia muito mais inteligente que Edward.
        A casa Rosário só sabia fazer estratégias. Nunca gostei dos pais de Edward, não pareciam sinceros em nada que dissessem. Mas nosso amigo não permitia que falássemos dos seus pais.
        Por um momento pensei no quanto Rose devia se sentir solitária, sem a presença dos seus pais, vivendo em uma casa sozinha. Nunca me imaginei assim, acho que não conseguiria suportar a pressão.
        Entretanto, Rose era herdeira das terras da casa Rigdor, o que no futuro poderia ser uma grande vantagem. Será que serei uma rainha ao lado dela? Pensei e afastei da minha mente essa possibilidade.
         Não só em Millandus, mas em vários outros reinos as mulheres não eram respeitadas, sempre forçadas a firmar um casamento com um príncipe de outra casa, por interesses financeiros.
        Meu pai uma vez tentou arranjar um casamento, eu seria esposa de um futuro duque de Zufreid, do outro lado da muralha, mas a praga foi minha salvação, afinal, quando a muralha foi levantada, eu tinha apenas seis anos.
        Rose tinha sete quando chegou à Millandus, o que significava que ela não conheceu a vida pré-praga. As pessoas andavam sem medo, viajavam entre territórios e eram felizes.
        Eu odiava a situação atual, aquela muralha havia sido construída para proteção do povo do Sul, mas colocando em decadência os reinos do Norte.
        Era injusto.
        Pessoas inocentes foram condenadas a sofrer todos os dias para que nós vivêssemos em segurança.
         Embora não amasse o lorde de Zufreid, nós tínhamos uma amizade saudável. E não sabia como ele estava, se já havia se tornado duque ou continuava como Lorde.
         Do lado Sul da muralha não era nesse mesmo padrão, Lordes, ou Duques ou Barões. Deste lado chamávamos um duque de rei, um lorde de príncipe e um barão de membro do conselho.
          Meu pai costumava acreditar que os povos do lado Norte eram mais ricos apenas pelos nomes diferentes, e queria realmente entregar minha mão ao filho do duque Farwell, de Zufreid.
         Mas quando ele me viu beijar a filha de um fazendeiro...
         Ele fora o culpado pela morte dela, pois pagou homens para levá-la próximo a muralha, que na época ainda era uma área muito infectada pela praga, seu corpo fora encontrado duas semanas depois, em estado de decomposição avançado.
         Rose me perguntara sobre isso em Rubria, mas decidi não contar toda a verdade, alimentar seu ódio tiraria o foco do verdadeiro motivo de estarmos lá.
         A carruagem estava cheia com tecidos do tipo Vinsert. Feitos do couro dos Scors, criaturas medonhas. Meus pelos se eriçavam só de lembrar daquelas coisas.
        Olhei para a janela e vi meu reflexo no vidro. Eu estava com o rosto abatido, seria medo de reencontrar meu pai depois de tantos dias agradáveis?
        Tirando quando fomos perseguidos por um Scors. Nunca senti tanto medo na minha vida. Criatura medonha.
         Depois de algum tempo a carruagem diminuiu a velocidade quando as primeiras partes dos muros de Millandus apareceram ao nosso lado.
         De longe eu já podia ver a destruição, provavelmente vinte por cento do reino havia sido destruído pela batalha.
        Rose acordou quando sentiu a carruagem diminuir, olhou para a janela e seus olhos se encheram de lágrimas quando viu o rastro de desgraça que os pesadelos deixaram.
         Devagar a carruagem se aproximou dos portões fortemente escoltados pela guarda real, Joel liderava os homens, pensei que Rose chamaria a atenção do soldado, mas ficou em silêncio.
         Ela parou no meio do reino e descemos, minha casa estava há alguns metros dali, e eu conseguia ver as luzes ligadas. Rose olhou para mim e disse:
        — Preciso ir até o castelo, se quiser vir comigo, não vai precisar entrar naquela coisa — ela apontou para minha casa.
       Balancei a cabeça negativamente.
       — Não, eu vou para casa, tenho que enfrentá-lo — respondi cheia de confiança.
       Rose sorriu e quase a beijei, mas ali na frente de todo mundo seria impossível.
       — Se precisar de mim, sabe onde me encontrar.
        Assenti e vi Marcus acompanhá-la até o castelo, provavelmente ele também participaria da possível reunião do conselho.
        Caminhei até minha casa, sentindo meu coração errar as batidas a cada passo. Quanto mais me aproximava, mais a casa parecia ter saído de histórias aterrorizantes dos livros na biblioteca.
        Cheguei até a porta com muito esforço e segurei a maçaneta, hesitando abri-la. Tenho que enfrentá-lo. Pensei.
        Finalmente a abri.
        Minha mãe estava sentada em um dos degraus da escada, e assim que me viu, seus olhos brilharam e encheram de lágrimas. Ela suspirou aliviada, mas quando se levantou para me abraçar, meu pai apareceu, vindo da sala com sua expressão de raiva, como sempre.
        — Você pensa que já é dona de si mesma?! — Gritou ele —, onde estava esse tempo todo?!  
         Tentei falar, mas fui interrompida por mais gritos descontrolados dele. Meu pai bateu a porta atrás de mim e me deu empurrões até a cozinha, gritando: Você vai se arrepender de ter saído sem nos avisar.
         Lancei um olhar de súplica à minha mãe, mas ela já havia desaparecido para dentro do quarto, onde ouviria meus gritos de dor, chorando por não ter forças para impedir.
         Meu pai acendeu o fogão e senti o calor do fogo atingir meu rosto, respirei fundo para controlar o profundo medo que sentia, enquanto repetia diversas vezes em minha mente que o enfrentaria.
        — Vamos ver se vai ter amigos quando virem sua cara toda queimada e derretida — disse ele segurando minha cabeça.
         Percorri com meus olhos pela bancada ao meu lado, havia um garfo apenas, que ele provavelmente usaria para perfurar minhas mãos diversas vezes, mas desta vez eu não permitiria.
         Agarrei o garfo e cravei em sua perna, escutando seu gemido de dor, mas não foi suficiente para fazê-lo me soltar. Então repeti o golpe no mesmo lugar e desta vez o ouvi segurar o grito.
        Seu aperto afrouxou e me virei para ele com um movimento rápido, e sem hesitar, enfiei o garfo em um dos seus olhos e o deixei lá. Eu nunca ouvi meu pai gritar tanto.
         Ele recuou alguns passos tentando criar coragem para retirar o garfo do seu olho, mas quando voltou sua visão para mim, eu quebrei uma garrafa de vinho em sua cabeça.
         Ele tonteou e eu rapidamente bati seu rosto na mesa, fazendo o garfo entrar ainda mais em seu olho. Meu pai caiu, mas não o deixei se levantar e comecei a pisotear sua cabeça.
          Cinco, quinze, vinte minutos se passaram e eu não parava de pisar na cabeça dele. Só consegui me controlar quando percebi que seu sangue já havia tomado boa parte da cozinha. Minha saia estava suja de sangue, minhas mãos e até as pernas.
         Percebi que minha mãe me observava boquiaberta e assustada, provavelmente atraída pelos barulhos. Meu pai tremeu, e pisei de novo em sua cabeça, mas não se passava de um espasmo do corpo ensanguentado.
         Caí sentada com as costas encostadas na parede, e cobri meu rosto com as mãos, tentando controlar minha respiração. Eu havia me descontrolado, matara meu pai.
         Minha mãe saiu para fora e pediu ajuda, e percebi como ela o amava, a ponto de permitir que ele a ferisse e me ferisse também. Quatro soldados da guarda real entraram em casa e me viram sentada no chão, diante do cadáver do meu pai.
         Rose não demorou aparecer, junto de Marcus, que ajudou ela a me tirar da casa. Eu estava em estado de choque, e não conseguia esquecer do grito de dor dele.
         Então senti o que Rose sentira quando matou pela primeira vez, uma sensação de vazio, mas ao mesmo tempo onipotência.
         Não conseguia ouvir ninguém, parecia que meus ouvidos estavam tapados. Apenas podia ver as pessoas se aglomerando ao meu redor, com muita curiosidade para saber o que havia acontecido.
        Embora eu achasse que vomitaria, não aconteceu, mas a sensação não era agradável. Percebi que já não estava em casa quando Rose repousou um copo com chá em cima de uma mesinha na sala. Ela usava um vestido cinza.
        — Beba... sei como se sente — ela se sentou de frente para mim —, e pode apostar que ficará perturbada por alguns dias até se acostumar.
        Não falei nada e peguei o copo, sentindo o líquido quente contra meus dedos gelados.
         — Não se culpe — disse ela —, aquele homem mereceu.
        Continuei em silêncio. Rose estava tentando me fazer ficar melhor. Quanto tempo já havia se passado desde que aconteceu? Estava escuro lá fora.
         Senti o perfume de Rose, ela provavelmente já tomara banho. Por quanto tempo fiquei em choque?
        — Conversei com sua mãe, ela concordou em você ficar aqui comigo até conseguir superar — Rose se recostou na poltrona e continuou —, o rei pediu exames no corpo de sua mãe, encontraram as marcas, você não será punida.
         Aquilo confortou meu coração, mas eu simplesmente não conseguia dizer uma palavra sequer.
         — Peguei suas roupas lá, pode tomar um banho e descansar.
         Rose se levantou e caminhou até mim, depositando um selinho em meus lábios. Olhei para ela com as lágrimas descendo.
         — Está tudo bem, você está livre dele agora.
         Ela me abraçou e ficamos ali, paradas enquanto eu chorava de desespero pelo que fiz, não conseguia acreditar que havia matado meu pai tão brutalmente, mesmo que Rose insistisse em dizer que estava tudo bem.
        Naquela noite, tive muitos pesadelos com o grito de dor dele, mas não sentia pena.

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