Capítulo 21

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        Me levantei com muita dificuldade horas depois, eu não sabia se havia amanhecido ou algo do tipo, apenas acordei. Minhas pernas e braços estavam extremamente pesados, transformando a caminhada em um trabalho árduo.
        Caminhei devagar até o parapeito do lado de fora e vi um buraco no alto, o céu estava iluminado e percebi que estava em uma construção subterrânea.
         Haviam pessoas no pátio vários metros abaixo, pareciam estar orando, pois os murmúrios chegavam aos meus ouvidos como cântico baixo, olhei ao redor e vi crianças brincando com um graveto.
        Todas as pessoas tinham a mesma cor, tão brancos que chegavam ser pálidos. Quase todos de cabelos claros, próximo ao branco. Eram pessoas lindas.
        Maalavan caminhava por entre as crianças, entregando pequenas frutas que pareciam uvas. Um punhado delas para cada um, como se aquilo fosse regrado.
        Fiquei encostada no parapeito, minha vontade não era sair dali, mas eu precisava me movimentar, ou meus músculos se acostumariam a ficar em uma posição só.
        Dei um passo de cada vez e, parecia que até o antigo ferimento em minha perna causado por um caco de vidro voltara a doer.
         — Não deve se movimentar assim — disse uma voz feminina atrás de mim —, quando se toma o Gignac, os músculos enrijecessem por antes estarem muito flácidos.
         Me virei e vi uma adolescente de não mais que quinze anos, era linda, pele branca, olhos azuis cintilantes e cabelos tão claros que pareciam brancos.
        — Maalavan me disse que você tinha acordado — ela veio até mim —, pode se apoiar nos meus ombros.
        Deixei ela tomar meu braço e passar ao redor do seu ombro, dando-me mais firmeza para caminhar.
       — Me chamo Yara — disse a garota —, sou pupila do Mestre-Sacerdote Maalavan.
       — Entendo... — fiz uma breve pausa —, qual a diferença entre vocês e os sacerdotes de Riviera?
       — Os sacerdotes e Sacerdotisas de Riviera não existem mais, não matavam, e não saberiam viver neste lugar.
       — Vocês matam?
       — Somos inimigos diretos do Império Sombrio.
       — Império Sombrio?
       — Eles tomaram o reino de Kyvar há algum tempo.
        Ela está falando dos Pesadelos. Pensei enquanto ela me levava na direção de Maalavan.
       — Vivem nos procurando, o rei tem medo de que lancemos alguma maldição nele.
       — Então vivem escondidos para que não sejam mortos?
       — Sim, Maalavan disse que se nos mantermos escondidos, um dia a reencarnação de Kristallrosa aparecerá para salvar a terra.
         Me lembrei do termo Kristallrosa, fui chamada assim em Rubria. Meu sangue gelou ainda mais, eu teria que aguentar aquele papo de profecia novamente.
        — Foi uma sorte sua nossos caçadores virem você sendo levada pelos Halab.
        — Esses Halab, são perigosos?
        — Essa semana você poderá vê-los.
        — Pera aí, semana?! Como assim semana?!
        — Você ficou apagada por uma semana, e só se recuperará em mais uma semana, todos são assim.
        — Eu... fiquei dormindo por uma semana?... alguém me procurou? Eu vim para cá de Millandus, estava em Zufreid e...
        — Se você é de Zufreid, está bem longe de casa, estamos entre as montanhas corta-vento e Vurian.
        — Onde fica isso?
        — Quatro dias de viagem a pé de Zufreid.
         Parei de andar. Não era possível que eu estava tão longe de Zufreid. Lembrei do mapa que o rei de Millandus mostrou enquanto viajávamos. Se estavamos perto de Vurian, significava que o Templo Subterrâneo de Rilvera estava há poucos quilômetros.
        — Tenho que voltar para Zufreid — eu disse.
        — Quando melhorar, vamos pedir permissão para nosso Fath.
        — O que é um Fath?  
        — Um tipo de pai, o homem santo que cuida de nós. Quase um rei.
        — Não posso demorar tudo isso.
        — Enquanto não estiver bem, não irá embora, é regra. Você se recuperará e poderá ir na próxima caçada no território Zufreidiano.
        — Certo... — concordei.
        — Mas se isso for te deixar mais calma, recebemos mensagens de que vários soldados de Zufreid estão espalhados por toda a imensidão do território, e fizeram contato com Vurian para passar da Montanha-Corredor.
         — Aquele caminho entre duas montanhas que fica no limite de Zufreid? — perguntei.
         — Sim.
         — Estamos muito longe dela?
         Ela balançou a cabeça positivamente. Mas saber que estavam me procurando, confortou meu coração.
         — Você... conhece o Templo Subterrâneo de Rilvera?
         — Ah, conheço sim, aqui chamamos de Portal da Morte.
         — Porque? — voltamos a andar.
         — Não há como descer, havia uma escada, mas depois que Rison foi destruída e o olho de Rilvera sumiu, a escada caiu, então, muitas pessoas usam aquele buraco para acabar com suas vidas, por isso chamamos de Portal da Morte.
         — Entendi.
         — Está interessada nele?
         — Talvez eu queira visitá-lo.
         — Quando estiver melhor.
        Silrur havia me contado sobre aquele templo, e existia a possibilidade do diadema estar lá, afinal, ele mesmo se escondeu de acordo com a lenda.
        Eu precisava ir até lá antes de voltar para Zufreid, analisar o lugar e pensar em uma maneira de descer e procurar pelo artefato.
        Passamos por um salão e descemos uma rampa para chegar até Maalavan, pois, de acordo com Yara, ele queria que eu fosse vê-lo depois que acordasse.
         Ele estava de costas quando finalmente chegamos. Yara e eu o esperamos entregar o último punhado de frutinhas para a criança, em seguida se virou para nós como se já soubesse que tínhamos chegado e me observou.
        — Ainda parece cansada — Maalavan se aproximou e tocou meu pescoço. Senti minha pulsação em seu dedo —, o coração está saudável, a praga não o afetou.
        Yara ficou completamente em silêncio, apenas vendo com atenção o que ele fazia em mim. Maalavan tocou meus braços, pernas, barriga e analisou os nervos de cada membro.
        — Nenhum nervo foi danificado, só estão fracos — disse ele se virando para Yara —, quatro doses de Lassan, duas de Fihar e uma gota de Gignac por dia. 
        Ela assentiu em silêncio, se reverenciando lentamente.
         — Assim que os nervos estiverem melhor, leve-a para treinar até recuperar a força, ela só estará bem quando for capaz de caçar e matar um Halab.
        — Sim, Mestre-Sacerdote — respondeu Yara.
        Maalavan desapareceu caminhando. Yara me ajudou a sentar em uma cadeira perto dali e correu para os armários, procurando alguns vidros.
        — O que é Lassan e Fihar? — perguntei.
        — Lassan é uma mistura de ervas batidas, você tem que beber o líquido delas. Fihar tem o apelido de Bala 'D Ambrósia, ajuda a recuperar a energia.
         — Já comi uma dessa, Maalavan me deu depois que tomei aquele remédio horrível.
         — Toda vez que beber Gignac, deve ingerir uma Fihar, o remédio retira muita energia, pois concentra nas áreas que precisam ser curadas, e aí, Fihar ajuda a repor.
         — Mas eu dormi.
         — A quantidade de Gignac que foi dada a você era maior que a Bala 'D Ambrósia, e foi bom você ter dormido.
         Ela colocou os vidros na mesa, todos contendo as coisas que Maalavan prescreveu. Foi incrível como ele soubera quais remédios eu deveria tomar, e a quantidade exata, só tocando meu corpo.
         Comecei a acreditar que eles realmente podiam ser capazes de lançar uma maldição no rei do império, e só não lançaram por pena.
         Era tudo silencioso ali, o único som vinha de algumas conversas dispersas e os murmúrios das pessoas que estavam orando lá embaixo.
         — Como se caça um Halab? — perguntei.
         — É uma tarefa complicada, primeiro temos que ancorá-lo, usamos garras de ferro presas há uma corrente, nós a jogamos nos ombros dos Halab e o prendemos no chão, o difícil é ele ficar, a morte tem que ser lenta e sem sofrimento para ele, ou mancha a pele e a carne — ela se levantou e pegou alguns instrumentos metálicos para triturar as ervas —, temos que matar ele com uma agulha.
         — Agulha?
         — É como uma lança, a gente perfura o coração do Halab com ela, enquanto outro faz a mesma coisa no cérebro. Morte instantânea, mas é difícil, eles se debatem, são fortes, às vezes até machucam alguns dos nossos.
         — E eles são as únicas ameças?
         — Temos que tomar cuidado com os dragões selvagens, mas só habitam perto de Kyvar. Os Halab por si só já são perigosos, seus gritos atraem outros, e se não formos rápido, logo enche deles e aí somos obrigados a fugir ou matar o enxame.
          — Qual é o tamanho de um?
          — Duas vezes um urso.
       Engoli em seco e imaginei se um Halab seria capaz de vencer um Scors. Percebi que o casaco de pele que eles usavam era feito com a pele dos Halab, e comiam a carne e faziam remédio com o sangue.
        Contive a vontade de vomitar e afastei o pensamento. Talvez usavam a pele por conta da coloração branca que ajudava a se camuflar na neve e impedir ataques do império sombrio. Pensei nisso.
         Então líder dos Pesadelos levantou um império usando o terreno de Kyvar, imaginei se ele havia matado o rei de lá, e se fez o mesmo com os duques das outras casas para ter liberdade para fazer aquilo.
         Silrur tinha que saber sobre os Manak, se são muitos, poderíamos virar o combate a nosso favor, juntando as tropas do lado Sul e Norte mais os Manak.
         Mas... e se o Império Sombrio tem força militar suficiente para abater todos de uma vez só? Eu tinha que descobrir. Como fazer isso era o problema.
        Me infiltrar em Kyvar seria uma boa ideia, mas sozinha era suicídio. Eu estaria cercada de inimigos caso desse algo errado e não teria reforço, morreria sozinha.
         Eu devia montar um plano com etapas, e a primeira etapa seria visitar o portal da morte e descobrir uma maneira de descer, depois avisaria Silrur sobre os Manak. O resto eu decidiria depois.
         De repente senti o ambiente esquentar. Tochas foram acesas e o buraco no topo foi fechado com pele de Halab. Yara me olhou em silêncio, a oração se encerrou e me perguntei o que estava acontecendo.
         Aos poucos um som persistente de montaria começou a ficar mais perto, até passar e rondar a área freneticamente.
         — Soldados do império, procurando a gente — sussurrou ela —, não podemos fazer nenhum barulho ou vão ouvir.
          Assenti e fiquei escutando a movimentação do inimigo. Meu coração estava acelerado e o medo me atingia como um soco na boca do estômago.
        — Halab avistado! Recuar! — ouvi a voz dos soldados e o som da retirada deles.
        Yara sorriu e quando se afastaram, tudo voltou ao normal, exceto pelo buraco continuar tampado.
         — Nossos caçadores soltaram os Halab, temos alguns enjaulados, prontos para dispersar esses inxeridos — disse ela, com um sorriso selvagem nos lábios.
         — Vocês capturam os Halab?
         — Os soldados do império não sabem matar eles, demoram muito e acabam cansados antes de conseguir, então, nós soltamos um ou outro quando eles se aproximam demais, pensam que aqui é território dos Halab.
         — Inteligente... muito inteligente.
         — Sempre desconfiam dessa área, mas não têm tempo, quando avistamos sua aproximação, os nossos caçadores imediatamente soltam os Halab.
         — Como sabem que eles estão se aproximando?
         — Círculo de gelo polido, aumenta o alcance da visão, e com um pedaço de ferro refletimos a luz do sol para comunicar alguém daqui. Os vigias ficam na montanha corta-vento, a luz de aviso é a única coisa que podemos ver no horizonte.
         — Mas e se os inimigos verem?
         — Estão ocupados demais no som que as patas dos cavalos fazem no solo. 
         Aquelas pessoas eram extremamente inteligentes, o modo com que aprenderam a se defender era admirável, talvez seja por isso que o inimigo queria acabar com eles, pela ameaça que representam ao seu império.
         Os Manak aprenderam tudo sobre o lugar em que moravam, para usar o ambiente a seu favor, isso demonstrava uma maestria enorme. Em uma batalha seria uma vantagem, e colocava o império em calça curta.
         Yara terminou de triturar as ervas e colocou dentro do vidro para liberar o líquido que me seria benéfico. Nem quis imaginar o gosto daquilo, pois só de lembrar do Gignac meu estômago ameaçava colocar para fora o que quer que estivesse nele.
        Yara se levantou e prendeu o cabelo, guardou os vidros no bolso do sobretudo de pele de Halab e limpou os instrumentos que usara, depois me levantou e começou a me guiar mais para baixo.
         — Onde vamos? — perguntei.
         — Vamos ver o nosso Fath — ela respondeu.

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